Reflexões sobre a exposição do histórico da testemunha no Tribunal do Júri
O Tribunal do Júri é um símbolo da participação popular na Justiça e sabemos que é comum ele envolver questões sensíveis e muitas vezes pouco exploradas na prática forense.
Uma dessas questões é a exposição do histórico de vida de testemunhas durante o julgamento que leva ao seguinte questionamento com menos respostas por parte dos juristas diante da relevância presente: qual o limite entre a verdade e a plenitude de defesa?
Afinal, seria correto trazer à luz detalhes da vida pregressa de uma testemunha diante de um júri? Impedir essa exposição violaria a plenitude da defesa, ou permitir essa prática colocaria em risco a dignidade e a imparcialidade do processo?
A ausência de jurisprudência clara sobre o assunto é um indicativo de que se trata de uma área ainda em construção no Direito Criminal. É verificado no dia a dia dos operadores de Direito como há uma vasta quantidade de decisões relativas à intimação de testemunhas, à desistência de sua oitiva por parte do Ministério Público ou da defesa. Por outro, a despeito da relevância já mencionada, não há diretrizes firmes sobre a obrigatoriedade ou os limites da exposição de seus históricos pessoais.
Na prática dos tribunais, sobretudo no Tribunal do Júri, esse é um aspecto que desperta sensibilidade. Quando uma testemunha é chamada a depor, ela está, em princípio, comprometida com a verdade, diferentemente da própria parte no processo, que não tem a mesma obrigação legal de não faltar com a verdade.
Entretanto, muitas vezes, as testemunhas, sobretudo no campo da defesa, chegam sob um véu de desconfiança, enquanto as da acusação parecem gozar de maior credibilidade. Esse fenômeno, perceptível nas salas de julgamento, repousa sobre desconfianças com relação à igualdade de tratamento entre as partes.
Sabemos que é comum que os advogados e advogadas criminalistas se deparem com situações em que as testemunhas de defesa são tratadas com maior ceticismo. O Ministério Público, por vezes, coloca em questão a veracidade do depoimento das testemunhas de defesa, levantando alegações de que elas estariam sendo coagidas ou de que sua presença no processo não é necessária. Essa suspeita inerente às testemunhas de defesa contrasta com a recepção aparentemente mais favorável das testemunhas de acusação, que muitas vezes se apresentam com mais segurança e propriedade.
Esse desequilíbrio é problemático e reforça a importância de se discutir até onde pode ir a defesa na tentativa de questionar a credibilidade de uma testemunha. Do mesmo modo, para fins de exemplo, se uma testemunha afirma nunca ter manuseado uma arma e a defesa detém provas ou indícios de que essa pessoa já cometeu crimes envolvendo o porte de arma, seria justo impedir que tais informações sejam trazidas ao julgamento? Ora, neste cenário, a defesa não estaria apenas cumprindo seu papel de desconstruir o depoimento de uma testemunha que pode estar faltando com a verdade, mas também ajudando o tribunal a evitar que um julgamento seja comprometido por falso testemunho.
A falta de coragem para explorar esse caminho dentro do Tribunal do Júri nos tempos atuais é compreensível diante da possibilidade de advogados serem acusados de coagir as testemunhas. Frequentemente, o Ministério Público se levanta em defesa daquelas, argumentando que a exposição de fatos de suas vidas pessoais não tem relevância para o caso ou que essa linha de questionamento estaria ferindo sua dignidade. Contudo, o cerne da questão reside na necessidade de se avaliar a credibilidade do depoimento. Se a testemunha está mentindo, a verdade necessita prevalecer, mesmo que isso envolva expor detalhes de seu passado.
Aqui se encontra o principal questionamento quando chegamos ao cerne desse debate: como assegurar que a defesa exerça plenamente seu direito de questionar a veracidade das testemunhas sem, contudo, transformar o julgamento em um palco de ataques pessoais? A resposta não é simples, e o equilíbrio entre a busca pela verdade e a proteção dos direitos individuais deve ser uma prioridade.
Um ponto importante que ainda merece atenção é o tratamento diferenciado dado às testemunhas protegidas. As testemunhas de acusação, especialmente aquelas protegidas, costumam ser vistas como mais confiáveis, enquanto as de defesa enfrentam obstáculos adicionais. Essas últimas frequentemente têm sua credibilidade questionada, e muitas vezes o próprio tribunal impõe dificuldades à sua oitiva, até mesmo suspendendo o júri para assegurar sua presença. Esse tratamento desigual gera uma percepção de que há um favorecimento da acusação, o que fere o princípio da paridade de armas e a própria ideia de um julgamento justo.
Ademais, ao tratar da obrigação das testemunhas em falar a verdade, é essencial lembrar que, enquanto a própria parte pode faltar com a verdade sem incorrer em crime, a testemunha, ao mentir em juízo, comete o crime de falso testemunho. Essa diferença é fundamental no contexto do Tribunal do Júri, no qual a veracidade do depoimento pode ser decisiva para o veredicto.
O primeiro passo para tal debate avançar na esfera criminal é que este aconteça de fato. É necessário que os operadores de Direito se posicionem acerca de a defesa ter ou não o direito de questionar a vida pregressa de uma testemunha, especialmente quando isso possa comprometer a credibilidade do depoimento e influenciar o julgamento. E é evidente que tal prática deve ser realizada com responsabilidade, evitando que se transforme em um meio de coação ou humilhação.
É necessário que nós operadores do Direito enfrentemos essa questão de frente, garantindo que a busca pela verdade seja compatível com a proteção dos direitos fundamentais, e, acima de tudo, assegurando que a plenitude da defesa seja sempre respeitada. Este é um desafio que precisa ser levado adiante sob pena de prejudicar a credibilidade e a justiça do processo penal.
Fonte: Vanessa Avellar Fernandez e Carlos César Coruja