Bitcoin não é um simples bem incorpóreo e não pertence à tradição jurídica dos direitos reais

Com o avanço das tecnologias de registro distribuído e da criptoeconomia, o direito tem sido desafiado a reinterpretar conceitos tradicionais à luz de novas realidades técnicas. Dentre esses desafios, destaca-se a atribuição de propriedade sobre criptoativos com base no simples conhecimento de chaves privadas. Este artigo busca demonstrar a falácia dessa equivalência, argumentando que o conhecimento de uma chave privada, por si só, não constitui título jurídico de propriedade, tampouco fundamento válido para imposição de deveres legais.
Confusão entre controle técnico e titularidade jurídica
No plano fático, é verdade que o conhecimento de uma chave privada pode possibilitar a criação de novos UTXOs (Unspent Transaction Outputs) a partir de outputs anteriormente associados àquela chave. Esse controle, entretanto, está condicionado à lógica criptográfica e programável do protocolo Bitcoin, que opera de forma autônoma e não confere posse ou titularidade jurídica em sentido estrito a nenhum de seus usuários. De fato, é o próprio sistema — mediante consenso descentralizado — que gerencia, valida e registra os estados sucessivos da rede, sendo, por assim dizer, o único custodiante dos registros que estruturam os ativos.
A possibilidade técnica de gerar novos outputs com base em uma chave privada não equivale à titularidade jurídica dos correspondentes valores. A confusão entre esses dois planos incorre em um erro categorial, pois converte a noção de propriedade — conceito normativo e institucional — em mera capacidade de atuação técnica sobre o sistema.
Com efeito, conforme bem explicado por Jürgen Habermas, a propriedade, assim como os contratos, são elementos institucionais, sobre os quais o “mecanismo de mercado se institucionaliza”:
“O senhor me pergunta se o mecanismo de mercado não tem suas normas intrínsecas. O conceito que faço disso é um pouco diferente: a saber, penso que o mecanismo de mercado se institucionaliza em função dos elementos básicos do direito privado. (contrato e propriedade). Essa institucionalização jurídica é concebida – permita-me descrevê-la deste modo – para que os participantes do mercado possam agir estrategicamente. Eles são livres para fazer o que quiserem. Calculam, pensam no quanto vão gastar e no quanto vão perder.”
Logo, reduzir um conceito de natureza institucional, como o de propriedade, à mera expressão de um fato naturalístico, compromete a segurança jurídica, uma vez que desconsidera elementos fundamentais da realidade jurídica.
Por sua vez, ao se desconsiderar esses elementos, os reflexos sobre a realidade concreta tendem a ser desastrosos, impossibilitando o tratamento jurídico adequado de hipóteses como a custódia de terceiros, copropriedade, dentre outras relações que podem envolver o compartilhamento ou a apropriação do conhecimento da chave privada.
A titularidade, nos moldes do direito brasileiro, exige mais do que o poder técnico de gerar um output válido: requer título jurídico legítimo que fundamente o domínio, respeitando os princípios e institutos que estruturam o direito patrimonial.
Reductio ad absurdum: caso dos múltiplos conhecedores da chave
Considere-se a seguinte hipótese: uma organização criminosa divide o conhecimento de uma chave privada entre quatro indivíduos, sem que nenhum deles saiba que os demais também a conhecem. Não há, portanto, common knowledge entre eles [2]. Um dos membros é preso e revela a chave a um policial.
Se aplicarmos a tese de que “conhecer a chave é ser proprietário”, então o policial, por conhecer a chave, passaria automaticamente a ser coproprietário dos bitcoins — junto aos criminosos. A conclusão é absurda. Mais ainda: se os demais membros movimentarem os bitcoins, o único conhecedor identificado — o policial — poderia ser responsabilizado pela transação, apesar de não tê-la realizado nem consentido.
Este exemplo mostra que o conhecimento da chave não é suficiente para a titularidade jurídica nem para a responsabilidade por alterações no estado da rede.
Anacronismo institucional: por que o conceito clássico de propriedade não se aplica ao Bitcoin
A tentativa de aplicar diretamente o conceito clássico de propriedade ao Bitcoin incorre em um anacronismo institucional. Trata-se de transpor, sem mediação crítica, uma categoria jurídica historicamente construída para lidar com objetos materiais ou ativos centralizados a uma realidade técnica e ontológica radicalmente distinta. O resultado é uma distorção teórica com implicações normativas significativas.
O conceito de propriedade, como reconhecido na tradição jurídica ocidental, foi desenvolvido em um contexto em que o objeto apropriável possuía referencialidade física ou institucional clara — um imóvel registrado, um bem móvel tangível, um saldo em conta sob a guarda de um custodiante. Em todos esses casos, a noção de titularidade estava ligada a registros jurídicos, títulos formais ou presunções sociais reconhecíveis, ancoradas em regras constitutivas que estruturam o sistema patrimonial.
De acordo com a ontologia social de John Searle, essas regras constitutivas seguem a fórmula “X conta como Y em C” — isto é, determinados fatos brutos (X) só contam como fatos institucionais (Y) dentro de um contexto normativo (C) previamente estabelecido. Conhecer uma chave privada (X), portanto, não pode, por si só, contar como propriedade (Y) sem que o sistema jurídico reconheça essa equivalência dentro de seu próprio conjunto de regras (C). Não há, hoje, um contexto institucional que formalize essa transição automática de conhecimento técnico para titularidade jurídica.
Jürgen Habermas contribui a essa crítica ao mostrar que institutos como o contrato e a propriedade não são normas derivadas da lógica de mercado, mas sim condições normativas que o possibilitam. São estruturas jurídicas projetadas para garantir previsibilidade, liberdade contratual e segurança jurídica. Aplicá-las a um sistema que rompe com os pressupostos de centralidade, autoridade normativa e formalização documental — como o faz o protocolo do Bitcoin — é projetar sobre o novo aquilo que só fazia sentido no velho.
Esse deslocamento anacrônico compromete a função do conceito jurídico, pois o Bitcoin não é uma “coisa” no sentido tradicional, nem está submetido a um sistema registral externo, nem depende de um custodiante institucional. Trata-se de um ativo gerido por consenso criptográfico, operando em uma estrutura que prescinde das bases institucionais tradicionais.
Por isso, insistir em aplicar categorias jurídicas clássicas ao universo dos criptoativos sem reformulação conceitual é mais do que um erro de enquadramento técnico: é um anacronismo institucional que deslegitima a coerência interna do sistema jurídico e fragiliza a segurança normativa dos sujeitos envolvidos.
Pragmática jurídica e atos de fala performativos
A crítica aqui desenvolvida adquire ainda maior densidade quando examinada à luz da filosofia da linguagem. Conforme propuseram John L. Austin (1962) e John Searle (1969), certas enunciações não se limitam à descrição de estados de coisas no mundo: ao serem proferidas, realizam ações — os chamados speech acts ou atos de fala.
Nesse sentido, quando o Estado, por meio de seus órgãos administrativos ou judiciais, afirma que um indivíduo é proprietário de bitcoin apenas por conhecer uma chave privada, não está apenas descrevendo uma realidade técnica ou fática. Está, de fato, executando um ato performativo com efeitos jurídicos concretos: impõe obrigações legais, como a declaração patrimonial à Receita Federal, o recolhimento de tributos, ou a sujeição à penhora de bens.
Trata-se, portanto, de um ato de fala institucional, cujos efeitos não derivam apenas de seu conteúdo semântico, mas da posição de autoridade normativa de quem o enuncia e de seus efeitos na estrutura normativa e na vida do destinatário. Como demonstrado por Searle, o significado de uma expressão jurídica não pode ser dissociado das intenções institucionais e dos efeitos pragmáticos que ela produz no mundo real.
Por isso, a análise da veracidade ou legitimidade de afirmações jurídicas como essa exige mais do que consistência lógica com normas abstratas: requer uma abordagem pragmática, que leve em conta os efeitos sociais, institucionais e tecnológicos que tais enunciados performam ao serem proferidos.
Bitcoin não é apenas um ativo digital: distinções fundamentais no direito brasileiro
A inaplicabilidade do conceito clássico de propriedade ao Bitcoin não decorre apenas de sua condição de bem incorpóreo ou digital. Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece, sem dificuldade, a titularidade jurídica sobre uma ampla gama de bens intangíveis — como softwares, direitos autorais, marcas, créditos, ações, milhas, e saldos em contas digitais, etc. No entanto, todos esses ativos possuem suporte institucional ou normativo claro, que permite identificá-los, protegê-los e vinculá-los a um sujeito de direito por meio de registros, contratos ou presunções legais.
Esses ativos intangíveis compartilham características essenciais:
- São emitidos ou reconhecidos por órgãos estatais ou instituições privadas reguladas (como o INPI, juntas comerciais, bancos, corretoras, emissores de valores mobiliários etc.);
- Possuem referencialidade jurídica e documental que permite vinculação subjetiva ( contratos, escrituras, cadastros, registros públicos);
- Permitem o exercício pleno das faculdades jurídicas da propriedade: uso, fruição, disposição e reivindicação judicial;
- Estão sujeitos a um regime jurídico que autoriza a intervenção do Estado para garantir a tutela da titularidade.
O Bitcoin, por sua vez, não é emitido por nenhuma autoridade central, não depende de reconhecimento estatal para existir e não possui nenhum suporte jurídico externo que o vincule automaticamente a qualquer sujeito de direito.
Ele é validado unicamente por uma estrutura distribuída e criptograficamente segura, cujas regras são regidas por consenso algorítmico e impessoal, operando à margem dos instrumentos jurídicos tradicionais.
Enquanto ativos digitais centralizados operam dentro de um ambiente regulado, por exemplo, um saldo em conta corrente ou um ativo financeiro, o Bitcoin dispensa completamente qualquer estrutura jurídica formal para circular, ser armazenado ou transferido. Isso implica que não há presunção legal ou institucional de titularidade associada ao controle técnico sobre os criptoativos. A relação entre o conhecedor da chave e os bitcoins acessíveis por ela é puramente factual, contingente, não jurídica.
Por essa razão, enquadrar o Bitcoin como se fosse um ativo digital comum, tal como um direito autoral, é ignorar sua natureza ontológica e institucional radicalmente distinta. Trata-se de um ativo que não apenas está fora das estruturas estatais: ele foi criado precisamente para dispensá-las!
Conclui-se, assim, que o Bitcoin não é um simples bem incorpóreo. Ele não pertence à tradição jurídica dos direitos reais, nem à categoria dos ativos reconhecidos e tutelados por registros públicos ou instituições autorizadas. Aplicar-lhe, sem crítica, o conceito jurídico de propriedade significa forçar uma analogia que desrespeita tanto os fundamentos dogmáticos do direito civil brasileiro quanto a ontologia própria dos criptoativos.
É puro anacronismo institucional!
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Referências bibliográficas
AUSTIN, J. L. How to Do Things with Words. Oxford: Clarendon Press, 1962.
SEARLE, John R. Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language. Cambridge University Press, 1969.
SZABO, Nick. Trusted Third Parties are Security Holes, 2001.
WRIGHT, Aaron; DE FILIPPI, Primavera. Decentralized Blockchain Technology and the Rise of Lex Cryptographia, 2015.
LEWIS, David Kellogg. Convention: A Philosophical Study. Oxford: Blackwell Publishers, 2002.
HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004
[1] HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 38/39
[2] Para um estudo detalhado acerca do conceito de “conhecimento comum” (common knowledge) e das convenções de modo geral Cf. LEWIS, David Kellogg. Convention: A Philosophical Study. Oxford: Blackwell Publishers, 2002. p. 52 et.seq.
Fernando Lopes é advogado, cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico e do escritório Lopes e Zorzo, especializado em tokenização e DeFi, autor e coautor de diversos livros sobre criptoativos e professor de Direito Penal e Tecnologia Blockchain.
Fonte: Conjur