A inteligência artificial em prol do acesso à Justiça
A busca da Defensoria Pública de São Paulo pela retroatividade do Tema 506 do STF
A cidadania, estabelecida no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, figura como um dos Fundamentos da República Federativa do Brasil. Esse conceito vai além da simples associação entre cidadania e o exercício de direitos políticos. Representa uma condição jurídica que vincula o indivíduo a uma sociedade politicamente organizada, proporcionando-lhe o exercício de direitos civis, políticos e sociais, ao mesmo tempo que lhe impõe o cumprimento de deveres e prerrogativas.
Esse vínculo de pertencimento à sociedade estatal – ou “à cidade”, no sentido original da Cidade-Estado grega – implica uma série de direitos e obrigações, cuja realização depende de estruturas organizadas pelo Estado. Assim, a cidadania exige que o Estado, como representante dessa sociedade organizada, se encarregue de estruturar as políticas e recursos materiais necessários para que esses direitos sejam efetivados, além de prover os mecanismos jurídicos de sua proteção.
Estabelecido esse primeiro fundamento, cabe agora uma segunda premissa de caráter lógico: a efetivação de direitos – sua concretização através de políticas públicas e proteção jurídica – deve estar em consonância com o contexto atual.
No cenário atual, caracterizado pela digitalização de relações e serviços e pela crescente disponibilidade de tecnologias para aprimorar a eficiência das atividades públicas, não adaptar as políticas públicas a esses avanços representa uma falha tão grave quanto a própria ausência dessas políticas. Ignorar ou negligenciar as ferramentas e desafios impostos por esse contexto é, em última análise, comprometer a própria concretização dos direitos.
Vivemos, portanto, em um contexto de digitalização das experiências humanas – econômicas, políticas, sociais e jurídicas. A cidadania, nesse sentido, deve também se expressar digitalmente. Surge, assim, a necessidade de definir uma “cidadania digital” que impõe ao Estado o dever de adequação para garantir direitos e prerrogativas, entre os quais se destaca o acesso à justiça.
No Brasil, a Defensoria Pública é responsável por assegurar o acesso à justiça como um direito fundamental. Assim, sem relegar sua atuação presencial à população historicamente vulnerabilizada, é essencial que essa instituição adote as tecnologias mais modernas em suas funções, com vistas a garantir os direitos da população em situação de vulnerabilidade.
Considerando o cenário de exclusão digital que atravessa camada expressiva da população paulista, é evidente que a digitalização deve se constituir como mecanismo complementar de ampliação do acesso à justiça sem impactar ou restringir uma atuação que priorize o contato pessoal e a oralidade nos atendimentos. Entretanto, isso não a torna uma necessidade menos urgente e essencial.
No caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, essa urgência é ainda mais acentuada, dada a vagareza histórica do processo de expansão da instituição. Quando de sua criação, em 2006, a Defensoria paulista herdou da extinta Procuradoria de Assistência Judiciária unidades em 22 comarcas. Passados mais de 18 anos e realizados nove concursos de membros/as, a Defensoria ainda atua apenas em 48 municípios.
Não se ignoram as dificuldades de estruturar uma instituição do porte que a Defensoria Pública de São Paulo precisa ter para atuar no Estado mais populoso do país. Mas a atual conjuntura permite que esse processo seja acelerado, sobretudo em demandas sensíveis como aquelas que envolvem pessoas presas injustamente.
É isso que pretende o grupo de pesquisa em inteligência artificial e precedentes qualificados, que foi lançado recentemente pela instituição. O primeiro foco de atuação se deu a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e que deu origem ao Tema 506. Vale destacar que foi a própria Defensoria de São Paulo que construiu a tese da inconstitucionalidade do tipo penal e levou o caso ao STF.
O grupo precisava encontrar meios de identificar os processos em que houve condenação por porte de até 40 gramas de cannabis sativa. O objetivo era pleitear a aplicação retroativa da decisão do STF, sobretudo nas condenações oriundas de comarcas que não contam com a atuação direta da Defensoria Pública.
Após as Secretarias de Segurança Pública e de Administração Penitenciária, além do próprio Tribunal de Justiça, apontarem a inviabilidade técnica de buscar os casos, foi necessário criar uma tecnologia capaz de selecionar os processos que se enquadravam nos parâmetros da decisão. Desenvolveu-se, assim, um modelo de processamento de texto que utiliza palavras-chave – de acordo com critérios previamente estabelecidos por defensores/as – para detectar processos criminais elegíveis.
A modelagem do algoritmo de processamento de linguagem natural (PLN) tinha como meta encontrar processos criminais relativos à lei de drogas, em circunstâncias onde a única droga encontrada foi a maconha e que a quantidade apresentada em juízo não excedesse o limite de 40 gramas.
Para construir este modelo de PLN, utilizamos plataformas de código aberto R Studio, Google Colab e uma conta gratuita do ChatGPT. A base de dados foi o banco de sentenças do TJSP, que é de acesso público e contava com cerca de 700 mil processos registados até março de 2024.
No quantitativo inicial de cerca de 700 mil casos do banco de sentenças, foram separados apenas aqueles que versavam sobre crimes relacionados à lei de drogas, categorizados no banco como “Tráfico de Drogas e Condutas Afins”. Em seguida, foi aplicado o segundo filtro com um conjunto de termos relacionados a maconha como: “cannabis”, “cannabis-sativa”, “maconha” etc.
A essa altura os filtros já haviam selecionado “apenas” 198.879, uma quantidade ainda impossível de ser analisada manualmente pelos Defensores/as Público/as que compõem a instituição. Aplicou-se, então, mais um filtro composto por palavras-chave que se referiam a uma variedade de drogas diversas da maconha: “cocaína”, “crack”, “lsd”, “ecstasy”, “md”, “k9”, “k4”, “cocaína”, “coca”, “bala”, “balinha”, “cristal”, “lóló” etc. Desse modo, foram encontrados 22.497 processos onde a única droga citada era a maconha, quantidade ainda bastante elevada para a análise humana.
Na sequência, foram gerados números inteiros e decimais acima de 40, acompanhando também padrões textuais comumente usados pelo judiciário para declarar quantidades de drogas nas peças processuais: “41g – 42g – 43g…”, “40,1g – 40,2g – 40,3g…”, “40,01g – 40,02g – 40,03g…”, “41 gramas – 42 gramas – 43 gramas…”, “40,1 gramas – 40,2 gramas – 40,3 gramas…”, “40,01 gramas – 40,02g gramas – 40,03 gramas”. O resultado da aplicação deste filtro no conjunto de 22.497 processos onde a única droga citada era a maconha eliminou mais 19.752 da análise de membros/as da Defensoria, pois se referiam a quantidades acima de 40 gramas.
Por fim, após a utilização de mais de 4 mil filtros, obteve-se a lista de 2.745 processos criminais passíveis de aplicação do tema 506 do STF. Em outras palavras, as ferramentas tecnológicas filtraram 2.745 processos num universo de aproximadamente 200 mil, o que seria inviável de ser feito por seres humanos.
São quase três mil pessoas que, com a ajuda da inteligência artificial, podem ter direito à absolvição e desencarceramento, em razão da aplicação retroativa da decisão paradigmática do STF.
Esses casos já estão sendo distribuídos a mais de cem Defensores/as Públicos/as de São Paulo, que ainda deverão analisar o conjunto probatório de cada processo e corrigir eventuais distorções dos algoritmos.
Até o momento foram analisados cerca de 400 processos e em 55% deles foi possível a atuação em favor da pessoa condenada. Mantida essa métrica, ao final da atuação terão sido beneficiadas mais de 1500 pessoas. Pessoas que, sem o uso da inteligência artificial, poderiam permanecer presas e sem acesso à justiça.
FONTE: Jota