Normas de recarga de veículos elétricos no Brasil: um caminho seguro ou obstáculos à descarbonização?

Recentemente foi publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo, a Portaria n.º CCB-001/800/2024, do Corpo de Bombeiros, diploma que veicula não só a primeira norma do Brasil sobre a segurança em estações de recarga para veículos elétricos, mas uma medida pioneira em escala global sobre a matéria.

Em um contexto no qual o Brasil não figura entre os principais mercados consumidores desses veículos, a iniciativa se destaca por sua ambição e pela possibilidade de estabelecer um precedente regulatório que poderia ser adotado de maneira ampla no país e no exterior.

No entanto, ao mesmo tempo que abre caminho para consultas públicas, em um prazo máximo de 30 dias, e busca solidificar padrões de segurança e operacionalização, há elementos críticos que suscitam reflexão sobre a profundidade técnica das medidas propostas. A complexidade inerente à tecnologia de veículos elétricos, especialmente no que tange ao manejo de baterias de lítio e suas peculiaridades em cenários de emergência, requer uma abordagem meticulosamente informada e atualizada com as práticas mais eficazes e seguras conhecidas globalmente.

Os avanços e inovações constantes levaram ao desenvolvimento de uma indústria de alta tecnologia, com forte viés de preponderância e validação de integração das novas práticas às questões ambientais, sociais e de governança corporativa, comumente denominadas pela sigla inglesa ESG (Environmental, Social and Governance).

O processo de inovação envolve não só investimentos, mas também riscos, uma vez que protótipos e versões iniciais de produtos, tais como o veículo elétrico, o quais podem redundar em potenciais danos aos seus usuários e à população em geral. Assim, o controle e a regulação das atividades inovadoras são recomendáveis, mas a questão não se esgota com esta simplicidade.

É preciso cuidado e bom senso para que o excesso de regulação e de medidas protetivas não desestimulem a inovação e impeçam o desenvolvimento tecnológico. Trata-se de um contexto bastante delicado, pois em se tratando da inserção do veículo elétrico em uma sociedade altamente dependente do transporte individual e baseada no abastecimento por meio de combustíveis fósseis, questões das mais diversas ganham destaque.

A já escassa infraestrutura de recarga para veículos elétricos, tanto em residências quanto em locais públicos como estacionamentos e shopping centers, é um desafio significativo para a popularização desses veículos no Brasil. Se a portaria exigir que até mesmo as instalações residenciais se adequem a normas complexas e talvez desnecessariamente rigorosas, conforme está redigido, talvez estejamos impondo um ônus técnico e financeiro significativo sobre o mercado.

Essa situação cria um paradoxo onde, ao tentar regular de forma segura a adoção de uma tecnologia essencial para a descarbonização veicular, podemos estar, inadvertidamente, criando barreiras que impedem o advento de uma economia de baixo carbono no Brasil. É fundamental que as regulamentações sejam projetadas para incentivar e não desestimular a transição para veículos elétricos. Afinal, a transição para a mobilidade elétrica não é apenas uma questão de inovação tecnológica, mas também um imperativo ambiental.

No caso da portaria do Corpo de Bombeiros paulista, esta apresenta algumas desconformidades dignas de nota, por exemplo, ao não distinguir entre veículos elétricos de fonte interna e externa, uma omissão que não pode ser subestimada. Essa distinção é crucial por diversas razões, principalmente devido às diferenças nas infraestruturas de recarga necessárias e aos riscos associados à manutenção e emergências. Regulamentações específicas que levem em conta essas diferenças são fundamentais para garantir que medidas de segurança adequadas sejam aplicadas de forma eficaz, mitigando riscos de forma apropriada para cada tipo de veículo.

É indispensável ponderar, também, que a portaria menciona inadequadamente o uso de água para combater potenciais incêndios relacionados às baterias de lítio. As baterias de lítio, quando expostas ao calor excessivo ou a dano físico, podem sofrer o que é conhecido como “termal runaway” – uma reação química que resulta em um incêndio intenso e difícil de controlar. A aplicação de água pode intensificar a reação, levando a explosões perigosas. Portanto, a necessidade de métodos específicos de extinção é evidente e urgente. Extintores de Classe D, à base de pó químico são especializados para lidar com incêndios de metais reativos e pirofóricos como o lítio, e são essenciais para combater esses tipos de incêndios de maneira segura e eficaz. A portaria deve corrigir essa recomendação para alinhar as práticas de segurança com os padrões internacionais e evitar orientações potencialmente desastrosas.

Ainda, temos que os itens 3.1 a 3.5 da portaria merecem uma abordagem específica, uma vez que a exigência de que o corte de energia seja ativado por um dispositivo de alarme próximo às entradas principais, pode não ser suficiente para isolar de maneira segura os módulos de carregamento de energia. A instalação de carregadores na energia do serviço ou força, conforme mencionado, contradiz a própria lógica de segurança pretendida, pois permite que esses pontos permaneçam energizados mesmo quando outras áreas críticas estejam isoladas. Esta configuração pode resultar em riscos significativos durante uma emergência, contradizendo as normas de segurança estabelecidas pela norma brasileira ABNT NBR 5410/2004.

Outro ponto a ser examinado com especial cuidado é o que veicula a recomendação de equipar as estações de carregamento com extintores de Classe ABC. Tais extintores, todavia, podem não ser eficazes para incêndios envolvendo baterias de íon de lítio, os quais requerem um agente de extinção especializado como o da Classe D, ponto que pede reexame com vistas a uma maior segurança e eficiência.

A intensificação dos debates envolvendo a sociedade, e em especial especialista do segmento, certamente garantirá que as normativas de segurança a serem implementadas sejam eficazes e atualizadas, refletindo os avanços tecnológicos e as práticas internacionais de segurança. É vital que tais regulamentações sejam bem fundamentadas e revisadas continuamente para acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos, garantindo que o avanço na adoção de veículos elétricos ocorra de maneira segura para a sociedade. A criação de uma portaria tecnicamente sólida não apenas promove o progresso tecnológico, mas assegura a segurança pública, estabelecendo um precedente positivo para futuras legislações nacionais e internacionais.

Autores:

Marcus Pessanha, advogado. Especialista em Direito Administrativo-UFF, Direito Empresarial-UGF, Ciência Política – UCAM e mestrando em Ciências Jurídicas e Sociais, UAL, Lisboa, Portugal.

Flávio de Oliveira Santos. Engenheiro Eletricista, Engenheiro de Produção, Engenheiro de Segurança do Trabalho, Engenheiro Ambiental e Sanitarista. Pós graduado em SGI e QSMS, Gestão Ambiental e Mestrando em Ciências do Meio Ambiente.

Ricardo Soares, Químico  Industrial, Doutor em Geociencias, Coordenador do Mestrado Profissional em Ciências do Meio Ambiente da Universidade Veiga de Almeida.

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