Reforma e IPVA: justiça tributária e proteção ao meio ambiente
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Recentemente, em uma postagem no seu Instagram de 3 de fevereiro de 2025 [1], o governo do Distrito Federal anunciou a ampliação do benefício de isenção do IPVA para proprietários de veículos elétricos ou híbridos, novos ou usados [2].
Passando os olhos sobre os comentários, observa-se, em sua maioria, que a reação da população foi em tom de crítica à medida porque, supostamente, beneficiaria somente uma parcela mais rica da população, já que o preço dos carros elétricos ou híbridos é elevado, e nem todos, portanto, têm condições de adquirir veículos com essas características.
A esses comentários, o perfil oficial do governo do Distrito Federal respondia com uma mensagem padrão, nos seguintes termos: “O valor do bem móvel não é um fator relevante nesse caso. O foco está no compromisso com o meio ambiente e na geração de energia limpa. Vale destacar que essa iniciativa inclui tanto veículos novos quanto usados”.
Essa interação entre o governo do Distrito Federal e a população, mesmo que em uma simples postagem de rede social, revela um interessante tema que, principalmente com a reforma tributária promovida pela EC nº 132/2023, vem ganhando destaque entre os seus estudiosos: a função ambiental da tributação.
Apesar de ter sido intitulada de reforma tributária do consumo, a reforma produzida pela EC nº 132/2023 também inseriu, no texto constitucional, normas voltadas a conferir ao Sistema Tributário Nacional um caráter mais abrangente do que a sua tradicional configuração voltada à limitação do poder de tributar (garantias do contribuinte em face do Estado) e à previsão exaustiva de competências tributárias.
Princípios do sistema tributário
Com esse objetivo é que foi inserida a norma do artigo 145, §3º, da Constituição para prever que “o Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente”.
Ou seja, além de modificar as normas aplicáveis aos tributos que incidem sobre o consumo, a EC nº 132/2023 também representou uma mudança de paradigma do sistema tributário ao prever que a tributação só será uma atividade estatal legítima se e enquanto respeitar, entre outros princípios, a defesa do meio ambiente. Como bem ensina Arthur Maria Ferreira Neto:
Em síntese, a Emenda Constitucional 132/2023 revela não apenas uma mudança na estrutura formal do nosso Sistema Tributário, a qual, portanto, não fica adstrita a uma simples mudança no modelo de tributação de consumo (pela criação do IBS e da CBS), mas assume, expressamente, um compromisso material com a sustentabilidade, sinalizando uma abordagem ambiental proativa do Estado na construção de uma economia mais verde e consciente, onde a tributação emerge como ferramenta estratégica capaz de direcionar as escolhas empresariais e individuais em prol de um futuro mais sustentável. [3]
Foi com esse objetivo de conferir uma maior proteção ambiental por meio da tributação que a EC nº 132/2023 inseriu uma série de dispositivos com esse escopo [4], destacando-se entre eles o artigo 155, §6º, II, que passou a prever que o IPVA poderá ter alíquotas diferenciadas não só em função do tipo e da utilização (únicos aspectos autorizadores previstos até então, inseridos pela EC nº 42/2003), como também em razão do valor e do impacto ambiental.
Com essa possibilidade de adoção de alíquotas diferenciadas de acordo com o valor do automóvel, vê-se que a reforma também incorporou expressamente a progressividade no que diz respeito ao IPVA [5].
Leis estaduais
Ainda antes da reforma tributária, várias leis estaduais foram editadas prevendo benefício fiscal semelhante, de modo que não foi somente a partir da EC nº 132/2023 que a isenção para veículos híbridos ou elétricos, ou outro benefício fiscal com vistas à proteção ambiental e à sustentabilidade passou a ser possível.
O fato é que a norma editada pelo governo do Distrito Federal — e por outros estados — atende ao comando constitucional de conferir à tributação e, no caso, ao IPVA, a função extrafiscal de promover a sustentabilidade e concretizar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da Constituição).
Por que, então, houve um descontentamento da população no exemplo mencionado? O fato de a referida isenção, apesar da nobre finalidade ambiental, beneficiar grupo de contribuintes com certas condições financeiras possui o condão de deslegitimar a medida?
A compreensão perpassa, talvez, por outro ponto louvável da reforma tributária: o Sistema Tributário Nacional, para ser legítimo e eficaz, deve observar não só a defesa do meio ambiente, como também outros princípios, entre eles a justiça tributária.
Isto é, a mudança de paradigma promovida pela reforma tributária não se deu apenas sob o ponto de vista da tributação como instrumento concretizador da proteção ambiental, mas também da justiça tributária, de modo que possui também um papel voltado à redução e superação das desigualdades sociais, regionais, de gênero e de raça.
IPVA
Especificamente quanto ao IPVA, a reforma tributária previu normas voltadas a conferir a esse tributo uma maior justiça tributária, como a possibilidade de sua incidência sobre veículos aéreos e aquáticos de passeio, superando entendimento histórico do STF, que fundamentava essa não tributação [6]; bem como a previsão do valor do veículo como critério diferenciador de alíquotas, afastando qualquer alegação de que essa medida não seria viável em virtude da ausência de previsão constitucional.
Conclui-se, voltando ao exemplo do início do texto — bastante ilustrativo do novo paradigma buscado pelo Sistema Tributário Nacional após as mudanças realizadas pela EC nº 132/2023 —, que as políticas públicas que envolvam a concessão de benefícios ou incentivos fiscais não terão o respaldo da população pelo simples fato de o Estado estar renunciado à arrecadação de recursos públicos, mas pelo fato de essa renúncia vir acompanhada de uma finalidade extrafiscal socioambiental, que busque promover — concomitantemente ou não — a sustentabilidade e a justiça tributária, notadamente na sua faceta social.
No caso específico do IPVA, a EC nº 132/2023 previu mecanismos que permitem não só a consecução de uma finalidade extrafiscal ambiental, como também a própria justiça fiscal. Caso sejam implantados efetivamente o IPVA sobre aeronaves e embarcações de passeio e as alíquotas diferenciadas pelo valor, talvez a população não se sinta incomodada com uma isenção de finalidade ambiental que “beneficie” apenas aqueles com mais recursos financeiros e compreenda que, na realidade, essa política pública beneficia a toda a coletividade.
[1] Disponível em: https://www.instagram.com/p/DFoFlw2xtOq/?img_index=1. Acesso em: 10/02/2025.
[2] A ampliação a que faz referência a postagem diz respeito à edição do Decreto nº 46.799, de 29 de janeiro de 2025, editado com objetivo de garantir a isenção do IPVA não só a quem adquire os veículos de revendedoras localizadas no DF, mas também a quem adquire direto das fábricas.
[3] FERREIRA NETO, Arthur M. A reforma tributária e o novo marco da tributação ambiental. Revista de Direito Ambiental [Revista dos Tribunais online], São Paulo, n.113, jan./mar. 2024.
[4] O principal exemplo talvez seja o imposto seletivo (art. 153, VIII, da CF), imposto de competência da União, com incidência sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei complementar.
[5] PONTALTI, Mateus. Comentários à reforma tributária – EC 132/2023: Entenda o que mudou e por que mudou. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024. p. 72.
[6] Trata-se do entendimento firmado no RE 134509, julgado em 29/05/2002, em que o STF entendeu que o campo de incidência do IPVA não incluía embarcações e aeronaves. Segundo cálculo feito pelo Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional), a cobrança de Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre aeronaves e embarcações de passeio pode render aos cofres públicos uma arrecadação de R$ 10,43 bilhões anuais. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/ipva-de-avioes-e-barcos-de-passeio-pode-gerar-arrecadacao-anual-de-mais-de-r-10-bilhoes-diz-sindifisco/. Acesso em: 10/02/2025.
Thiago Kerensky de Morais Couto é procurador da Fazenda Nacional, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp e em Direito Público com ênfase em Contratos e Licitações pela Faculdade Educacional da Lapa.
Thales José Rêgo dos Santos é procurador da Fazenda Nacional, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Fonte: Conjur