Reforma tributária propõe regulamentar o ato cooperativo

Texto final precisará viabilizar a aplicação integral do princípio que protege o cooperativismo

O cooperativismo representa parcela de extrema relevância para a ordem econômica e social do Brasil. Dados de 20221 indicam receitas na ordem de R$ 656 bilhões e soma de ativos de quase R$ 1 trilhão, com retorno de R$ 1,65 para cada R$ 1 investido em cooperativas, em um universo de mais de 20 milhões de cooperados.2

Por conta da particularidade dessa forma de organização e produção, em especial ao viabilizar “um meio para uma melhoria da situação pessoal do associado, que se beneficiará imediatamente em suas atividades que motivaram sua participação na sociedade”3, o constituinte de 1988 teve a cautela de inserir, dentre os “Princípios Gerais” aplicáveis em matéria tributária (Título VI, Capítulo I, Seção I, da Carta), determinação no sentido de que caberia à lei complementar estabelecer “adequado tratamento ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”.

Não obstante, após 36 anos de Constituição, o cooperativismo ainda carece de uma codificação abrangente. Exceto por leis que envolvem setores específicos ou exigências fiscais igualmente específicas, a única norma dedicada ao tema é a Lei 5.764/1971, que menciona a tributação em apenas dois artigos (87 e 111), ambos voltados para operações realizadas com não cooperados. A reforma tributária atual traz a expectativa de mudanças significativas.

No aspecto constitucional, a Emenda n. 132/2023 manteve a determinação de que lei complementar regule o “adequado tratamento ao ato cooperativo”, acrescentando “inclusive em relação aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V” (IBS e CBS).

Ao tratar do IBS, introduziu-se uma novidade no texto. O parágrafo 6º do art. 156-A prevê que lei complementar disporá sobre “regimes específicos de tributação para” determinados setores e, no inciso III, foram elencadas as “sociedades cooperativas”, a quem o regime específico será “optativo, com vistas a assegurar sua competividade, observados os princípios da livre concorrência e da isonomia tributária, definindo, inclusive: a) as hipóteses em que o imposto não incidirá sobre as operações realizadas entre a sociedade cooperativa e seus associados, entre estes e aquelas e pelas sociedades cooperativas entre si quando associadas para a consecução dos objetivos sociais; b) o regime de aproveitamento de créditos das etapas anteriores”.

Alguns pontos merecem destaque.

Em primeiro lugar, não há disposição similar no artigo 195, V, para a CBS. De todo modo, a regulação da CBS, conforme o próprio inciso V, caberá à (“nos termos de”) lei complementar. Logo, o tema será definido no âmbito infraconstitucional.

Em segundo lugar, a previsão de regime facultativo que preveja a não incidência nas operações realizadas entre a cooperativa e seus associados e vice-versa, a rigor, não revela a melhor técnica jurídica. Afinal, a não incidência de tributos nessa hipótese decorre da característica da operação, mais precisamente a ausência de natureza econômica, pois a cooperativa é uma associação entre indivíduos “que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro”, como previsto no art. 3º da Lei n. 5.764/1971.

Desse modo, a previsão de que a lei complementar tratará do tema deve ser interpretada no sentido de reconhecer a natureza peculiar do cooperativismo e regular o modo de sua correta operacionalização, não deixando espaço para que o legislador infraconstitucional estabeleça a incidência de tributos sobre o ato cooperativo típico, o que implicaria, em última análise, violação ao próprio texto constitucional.

No aspecto legal, o PLP n. 68/2024, aprovado pela Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal, contém dispositivos aplicáveis a cooperativas dedicadas a setores específicos – que merecem, em outra oportunidade, exame individual – e dispositivos gerais aplicáveis ao cooperativismo como um todo, que importam mais diretamente ao presente exame e demandam especial atenção.

Nesse sentido, o art. 269 do texto encaminhado ao Senado estabelece que as cooperativas poderão optar por regime específico no qual ficarão reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS na operação em que: “I- o associado destina bem ou serviço para a cooperativa de que participa; e II- a cooperativa fornece bem ou serviço a associado sujeito ao regime regular do IBS e da CBS”. O parágrafo 1º ainda prevê a aplicação de algumas regras específicas.4

Quanto ao inciso I, sua inserção no PLP n. 68/2024 implica reconhecer que não há substrato econômico – nem, consequentemente, incidência de tributos – na remessa de bem ou serviço do cooperado à cooperativa a que estiver vinculado. Isso é da essência do cooperativismo. Melhor seria se, ao invés de opção pelo regime especial, houvesse a instituição de regra cogente que reconhecesse a não incidência – e não “alíquota zero” – nas remessas entre cooperativas e respectivos cooperados e vice-versa. Somente assim o ato cooperativo estaria livre de indevida equiparação (ou, pior, tratamento mais gravoso) em relação ao ato mercantil comum.

Embora o parágrafo único do artigo 79 da Lei n. 5.764/1971 estabeleça que “o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”, a partir do que sobrevieram julgados na linha de que “os atos cooperativos típicos – assim entendidos aqueles praticados entre as cooperativas e seus associados ou entre os associados e as cooperativas, ou ainda entre cooperativas, para a consecução dos objetivos sociais – não geram receita ou lucro5, tendo sido firmado o Tema Repetitivo n. 363/STJ (“Não incide a contribuição destinada ao PIS/COFINS sobre os atos cooperativos típicos realizados pelas cooperativas”), em sentido contrário também existem julgados que mantêm a incidência de determinados gravames sob o fundamento de que “tais hipóteses estão sujeitas ao princípio da legalidade, não havendo enquadramento legal que sustenta a possibilidade de suspensão do IPI quando da saída do produto (…) do estabelecimento industrial para as cooperativas de produtores”6 ou de que “nem essa norma (Lei n. 5.764/1971), nem a Lei 9.311/96 – que regulamentou a contribuição em comento –, contém qualquer disposição no sentido de isentar as cooperativas, mesmo em se tratando de atos cooperados, da incidência da CPMF”.7

Atualmente, por exemplo, o art. 36, V, do Decreto 7.212/2010 (RIPI) estabelece a incidência do IPI nas saídas de bens dos associados para as suas cooperativas, quando equiparadas a estabelecimento industrial (art. 11, I). Além disso, normas estaduais, como a Lei 2.657/1996 no Rio de Janeiro (art. 17, § 3º) e a Lei n. 7000/2001 no Espírito Santo (art. 38), preveem o ICMS nas operações entre associado e cooperativa, atribuindo responsabilidade para o destinatário. Esses exemplos indicam que ainda há dispositivos que, não obstante contrários ao princípio da neutralidade do ato cooperativo para fins fiscais, estabelecem exigência de tributos nas remessas de produtos do cooperado à cooperativa.

A positivação da “alíquota zero” (que, como antes referido, deveria ser “não incidência”) confere, de algum modo, segurança e estabilidade fiscal nas remessas de produtos e serviços feitas dos cooperados para suas cooperativas, em consonância com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, fixado em sede de repercussão geral, de que a legislação deve “garantir a neutralidade e a transparência, evitando tratamento gravoso ou prejudicial ao ato cooperativo e respeitando, ademais, as peculiaridades das cooperativas com relação às demais sociedades de pessoas e de capitais8. Isso, evidentemente, a depender de questões ainda a serem disciplinadas em regulamento, que será legítimo se e enquanto não acarretar ao ato cooperativo típico ônus fiscal, qualquer que seja ele, superior ao equivalente ato não cooperativo.

O inciso II do artigo 269, todavia, contraria essa diretriz ao assegurar a alíquota zero apenas ao fornecimento de bem ou serviço da cooperativa para o cooperado sujeito ao “regime regular” do IBS/CBS, aparentemente mantendo a tributação nas operações realizadas com cooperados optantes pelo SIMPLES Nacional ou pelo MEI (conforme artigo 21, § 2º, do PLP 68/2024).

A distinção de tratamento entre cooperados sujeitos ao “regime regular” previsto no PLP 68 e cooperados que apurem os tributos pelo regime simplificado previsto na LC 123/06, porém, se equivoca ao supor que a aplicação da alíquota zero implicaria vantagem adicional a estes últimos. Se o que retira o sentido da tributação é a ausência de natureza mercantil entre cooperativa/cooperado, pouco importa o regime de apuração dos tributos, pois o adequado tratamento do ato cooperativo apenas será assegurado em sua integralidade quando todas as operações dessa natureza não forem oneradas em patamar superior àquelas praticadas fora do cooperativismo.

Ademais, o SIMPLES é um regime que se operacionaliza mediante a “aplicação de alíquotas diversas para cada tipo de tributo sobre a base de cálculo substitutiva, sendo perfeitamente possível desse modo, segregar o montante correspondente a cada tributo dentro total pago9. Assim, “não havendo a previsão legal de hipótese de incidência sobre determinada situação fenomênica, inexiste possibilidade de pagamento desse tributo por estar simplesmente inserido na forma de pagamento simplificado”.10 Logo, não parece existir razão para negar aos optantes do SIMPLES ou mesmo do MEI o tratamento adequado reconhecido aos demais cooperados com relação aos mesmos tributos (IBS/CBS).

Tal medida desconsidera a natureza do cooperativismo e o entendimento do STF de que oart. 79 da Lei n. 5.674/1971 “trata o produtor e a sociedade como uma unidade”, visando “neutralidade para conferir um tratamento ‘adequado’” ao ato cooperativo, o que só será possível se a tributação “considerar a comercialização feita pela cooperativa, e não a transferência entre o cooperado e a cooperativa”.11

A cooperativa atua como longa manus dos cooperados, do que resulta “a necessidade de se conferir adequado tratamento tributário às cooperativas que leve em consideração sua realidade diferenciada, em que realizados atos internos – de transferência entre o cooperado e a cooperativa, visando seus objetivos institucionais – e atos externos – efetuados entre a cooperativa e o mercado”.12

Isso não significa, evidentemente, assegurar vantagem fiscal para cooperativas ou cooperados, quando não expressamente fixada em lei. Nas operações com terceiros, a tributação incide normalmente, tanto para o cooperado quanto para a cooperativa, por vezes via substituição tributária. O que se deve evitar é a tributação em remessas e retornos entre cooperados e cooperativas, porque “não existe mercado entre a cooperativa e o associado”13.

De outro lado, o artigo 270 merece elogios por assegurar aos cooperados sujeitos ao regime regular do IBS e da CBS a opção de transferir eventuais créditos, inclusive presumidos, para a cooperativa à qual pertençam, sem prejudicar a aplicação da alíquota zero. Isso elimina o problema atual de divergências de interpretação que dificultam o aproveitamento de créditos em operações intermediadas por cooperativas. O mesmo tratamento deverá ser assegurado aos cooperados optantes do SIMPLES Nacional que exercerem a faculdade prevista no art. 21, § 4º, do PLP 68 de apurar o IBS/CBS no regime regular e, como tal, tenham créditos para transferir.

Em conclusão, a EC n. 132/2023 e o PLP n. 68/2024, sem dúvida, apresentam grande evolução no trato do regime fiscal aplicável ao ato cooperativo, carente de um regramento uniforme no ordenamento atual. Urge, no entanto, aprimorar o texto atualmente em debate no Congresso Nacional a fim de viabilizar a aplicação integral do princípio que protege o cooperativismo e impede que o exercício do ato cooperativo implique ônus fiscal superior ao verificado no equivalente ato não cooperativo, o que significa reconhecer não apenas a ausência de natureza econômica nas remessas e trocas em geral entre cooperados e respectivas cooperativas, como também a neutralidade do ato cooperativo para quaisquer efeitos fiscais. Tudo isso de forma a prevenir novos litígios e observar a jurisprudência dos Tribunais Superiores acerca do adequado tratamento tributário do ato cooperativo.

1 https://www.somos.coop.br/noticias/como-as-cooperativas-movimentam-a-economia

2 https://www.jota.info/artigos/reforma-tributaria-e-sobrevivencia-das-cooperativas-uma-luta-urgente

3 BECHO, Renato Lopes, Tributação das Cooperativas, 4ª ed., RT, p. 110.

4 §1º: O disposto no caput aplica-se também:

I – às operações realizadas entre cooperativas singulares, centrais, federações, confederações e às originárias dos seus respectivos bancos cooperativos de que as cooperativas participem; e

II – às operação de fornecimento de bem material pela cooperativa de produção agropecuária ao associado não sujeito ao regime regular do ICMS e da CBS, desde que anulados os créditos por ela apropriados referentes ao bem fornecido.

§2º: O disposto no inciso II do caput aplica-se também ao fornecimento, pelas cooperativas, de serviços financeiros a seus associados, inclusive cobrados mediante tarifas e comissões.

§3º: A opção de que trata o caput será exercida pela cooperativa no ano-calendário anterior ao de início de produção de efeitos ou no início de suas operações, nos termos do regulamento.

5 STJ, REsp n. 1.741.047/SP, Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. 7/6/2018.

6 TRF3, Processo n .97.03.008762-0, j: 14/2/2008.

7 STJ, RESP n. 241.641, j: 12/3/2002.

8 RE 599.362, Min. Dias Toffoli, j: 06/11/2014.

9 STF, Pleno, RE-RG n. 598.468/SC, j. 22/05/2010, trecho do voto-vista do Min. Luiz Fux, p. 36 do acórdão.

Artigo 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”

10 Trecho do voto-vogal do Min. Gilmar Mendes proferido no RE-RG n. 598.468/SC, Pleno, j. 22/05/2010, pág. 72 do acórdão.

11 AgReg nos EDcl no RE n. 850.113, Min. Roberto Barroso, j. 24 a 31/3/2023.

12 RE n. 598.085, Min. Luiz Fux, j. 6/11/2014.

13 FRANKE, Walmor. Direito das sociedades cooperativas: direito cooperativo. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 26.

Fonte: Jota

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