STJ trata impacto do direito intertemporal na desconsideração da personalidade jurídica
Já é rotineiro, ao entrar uma nova lei em vigor, nos depararmos com jurisprudências discutindo se a nova legislação deve ser aplicada para relações jurídicas de trato continuado ou, como é o caso trazido por este artigo, nas centenas de milhares de ações judiciais em curso, como ocorreu quando o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) entrou em vigor. A temperatura dos debates aumenta se a matéria envolve uma das medidas mais eficazes para a recuperação de créditos discutidos no Poder Judiciário: a desconsideração da personalidade jurídica, incidente trazido pelo novo CPC e que tem a função de alcançar os bens dos sócios e administradores para responder por obrigações de responsabilidade da sociedade
Posto isto, em julgado recente conduzido pela ministra Nancy Andrighi, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu pela manutenção de uma decisão judicial proferida na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73), a qual determinou a desconsideração inversa da personalidade jurídica, ou seja, quando se permite a constrição de patrimônio de empresas das quais os devedores são sócios. As partes atingidas pela decisão foram intimadas após a entrada em vigor do novo Código Civil.
A decisão atacada foi proferida nos autos de um cumprimento de sentença, decorrente de sentença em ação de indenização, em que, após a constatação de sucessão irregular entre as empresas executadas, o juízo decidiu, sem intimar as partes, pela desconsideração inversa da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de pessoa jurídica diversa da empresa executada, composta pelos mesmos sócios, que também constavam no polo passivo da demanda executiva.
No recurso especial em questão, a recorrente defendeu que houve violação aos artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015, que dispõem sobre o incidente da desconsideração da personalidade jurídica. Com isso, esperava-se que fosse reconhecida a nulidade dos atos processuais praticados em cumprimento à decisão, que fora proferida em 2014, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1973.
Na lei atual, ao contrário do disposto no código anterior, determina-se um procedimento próprio, no qual o juiz deverá intimar as partes para que se manifestem sobre o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, direta ou inversamente, a fim de, posteriormente, decidir sobre a inclusão dos novos agentes no polo passivo do processo. A controvérsia, portanto, esbarra no direito intertemporal e nos requisitos processuais para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica.
O Código do Processo Civil de 2015 entrou em vigor em 18/03/2016 e, em seu artigo 1.046, dispôs: “Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973”. Com a expressão “desde logo”, fica claro que a norma processual elencada no Código de Processo Civil tem aplicação imediata aos processos em curso.
Apesar da intenção do legislador de aplicar imediatamente a nova lei aos processos pendentes, devemos lembrar que o processo é composto por uma sucessão de atos que ocorrem em momentos distintos. Portanto, cada ato processual deve ser avaliado em separado para se determinar qual lei o rege.
Com a vigência do novo diploma processual, a jurisprudência se questiona, com base na Teoria dos Atos Processuais Isolados e do princípio tempus regit actum, quais procedimentos devem seguir o Código do Processo Civil de 1973 e quais devem ser convertidos para o atual Código do Processo Civil de 2015.
Pensando nisso, o STJ elaborou uma série de enunciados administrativos (E. Adm.) do Código do Processo Civil de 2015, para orientar a comunidade jurídica sobre a questão do direito intertemporal referente à aplicação das regras dos dois códigos em diversas situações específicas.
Porém, apesar dos esforços do STJ para definir parâmetros, a temática está longe de se esgotar. Para contextualizar a decisão proferida pelo STJ no caso em discussão, é interessante analisar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
No direito material, a desconsideração da personalidade jurídica encontra-se prevista no artigo 50 do Código Civil de 2002. Nele foram estabelecidas, em rol exemplificativo, as hipóteses que justificariam sua aplicação, particularmente em casos nos quais a individualização entre a existência civil da pessoa do sócio e da empresa se perde, devido à atuação abusiva e fraudulenta, com o objetivo de proteger o patrimônio de um (sócio) ou de outro (empresa) de seus credores.
Como abordado na fundamentação do acórdão sob análise, “a desconsideração da personalidade jurídica tem como parâmetro, portanto, a atuação ilegítima da sociedade por meio do abuso de direito, praticado mediante violação da lei ou do contrato social e, ainda, da confusão patrimonial”.
Ou seja, uma vez configurados os requisitos presentes no artigo 50 do Código Civil, podem-se reconhecer duas formas de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. A primeira delas é a desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, que ocorre quando, para satisfazer os credores, os bens dos sócios são afetados. A segunda é a desconsideração inversa da personalidade jurídica, em que, para satisfazer os credores, o patrimônio da pessoa jurídica é afetado, o que ocorreu no julgado em discussão.
Apesar de o instituto da desconsideração da personalidade jurídica estar positivado desde a publicação do Código Civil de 2002, não havia no Código de Processo Civil de 1973 procedimento específico para sua realização, sendo sua aplicação pautada na jurisprudência.
Em termos gerais, se verificada em cognição sumária a presença dos requisitos específicos, o juiz já poderia “erguer o véu” da personalidade jurídica, superar a autonomia patrimonial e autorizar, de forma incidental, que um determinado ato de expropriação atingisse bens do sócio ou da sociedade, conforme se tratasse de desconsideração propriamente dita ou inversa.
Nesse contexto, a possibilidade de defesa daqueles que tinham seus bens afetados pela desconsideração era postergada, ou seja, apenas após o ato de expropriação é que os afetados poderiam se manifestar.
É exatamente o que ocorreu no caso em análise. Inclusive, na situação,, ambas as empresas sobre as quais foi constatada a “sucessão”, além de terem os mesmos sócios, que já figuravam como réus no cumprimento de sentença, tinham os mesmos advogados como representantes nos autos.
Apesar dessas “coincidências”, não foi interposto qualquer recurso à decisão que reconheceu a sucessão irregular das empresas executadas. Isso contribuiu, no entendimento do STJ, para a manutenção da decisão atacada, sendo inclusive reconhecida a preclusão da possibilidade de arguir a nulidade dos atos processuais praticados.
A ministra relatora entendeu que não há por que falar em reforma da decisão, seja pela inércia da recorrente na decisão que a incluiu no polo passivo da causa, seja pela situação temporal da lei a ser aplicada ao ato que assim decidiu. Não bastou, por parte da empresa executada, alegar que a publicação da decisão proferida em 2014 ocorreu em 2019, para fazer uso da nova lei que a beneficiaria.
Seguiu o STJ o seu entendimento consolidado de que a nova lei processual não retroagirá a atos já aperfeiçoados, ocorridos sob a vigência da lei antiga, ainda que o processo siga seu curso após a promulgação de uma nova lei, o que garante maior segurança jurídica aos atos já praticados, mesmo com a promulgação de uma nova lei em sentido contrário. Mais do que isso, a corte sinalizou que, mesmo definidos parâmetros mínimos para guiar a decisão sobre qual o direito aplicável à hipótese – quando presentes elementos de direito intertemporal – outros elementos processuais, como a preclusão da matéria discutida e os efeitos da decisão prolatada pelos tribunais estaduais, serão levados em consideração, de maneira casuística, para o julgamento dessas questões.
**Christinne Silva Areco, Débora Chaves Martines Fernandes, Giovana Branco e Ligia dos Santos de Andrade são advogadas da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados.