A reforma tributária e o setor de combustíveis

Um novo horizonte de simplificação e segurança jurídica
A aprovação da Emenda Constitucional 132/2023, seguida pela Lei Complementar 214/2024, marca um momento histórico para o sistema tributário brasileiro, propondo uma revolução na tributação do consumo. No âmbito dessa ampla reforma, o setor de combustíveis, que já possuía experiências exitosas de simplificação em regimes anteriores, ganhou um regime específico, desenhado para manter e aprimorar essas simplificações, aumentar a segurança jurídica e melhorar o ambiente de negócios.[1]
Este artigo se aprofunda nas principais mudanças trazidas pela reforma para o setor de combustíveis, abordando o novo regime específico, os mecanismos de não cumulatividade e crédito, os benefícios esperados, e os desafios e pontos que merecem atenção.
O regime específico para combustíveis
O inciso I do § 6º do art. 156-A da Constituição, inserido pela EC 132/23, reservou à lei complementar a função de dispor sobre regimes específicos de tributação para “combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez qualquer seja a sua finalidade, hipótese em que: a) serão as alíquotas uniformes em todo o território nacional, específicas por unidade de medida e diferenciadas por produto, admitida a não aplicação do disposto no § 1º, V a VII; b) será vedada a apropriação de créditos em relação às aquisições dos produtos de que trata este inciso destinados a distribuição, comercialização ou revenda; c) será concedido crédito nas aquisições dos produtos de que trata este inciso por sujeito passivo do imposto, observado o disposto na alínea “b” e no § 1º, VIII”.
A mera leitura do dispositivo constitucional revela os três aspectos distintivos do regime diferenciado de IBS e CBS aplicáveis a combustíveis. São eles: (i) a incidência monofásica, (ii) a aplicação de alíquota uniforme em todo o território nacional, específica por unidade de medida e diferenciada por produto, e (iii) certas particularidades no creditamento. Cada um desses pontos merece análise pormenorizada.
A incidência monofásica
No exercício da função delimitada pelo inciso I do § 6º do art. 156-A da Constituição, a LC 214/25 dedicou o Capítulo I do Título V (Dos Regimes Específicos do IBS e da CBS) à tributação dos combustíveis.
Conforme o art. 172 da LC 214/25, o IBS e a CBS incidem uma única vez sobre as operações, ainda que iniciadas no exterior, com gasolina, etanol anidro combustível (EAC), óleo diesel, biodiesel (B100), gás liquefeito de petróleo (GLP), inclusive o gás liquefeito derivado de gás natural (GLGN), etanol hidratado combustível (EHC), querosene de aviação, óleo combustível, gás natural processado, biometano, gás natural veicular (GNV) e outros combustíveis especificados e autorizados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), relacionados em ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e do Poder Executivo da União.
Em outras palavras: o regime diferenciado para combustíveis se baseia em um modelo de incidência única (monofásica). Isso significa que a tributação ocorre em um único momento no início da cadeia econômica, geralmente quando da importação ou da saída do produto do estabelecimento do primeiro produtor (por exemplo, quando da saída do combustível da refinaria de petróleo).
A tributação monofásica para os combustíveis não é novidade da reforma tributária. Ela já existia de forma exitosa para o ICMS (desde a Emenda Constitucional 33/2001 e instituída pela Lei Complementar 192/2022) e para a Contribuição ao PIS e a COFINS.[2]
Ainda assim, houve importantes modificações com relação à tributação anterior. Entre elas, merece destaque o escopo do regime monofásico agora instituído. Isso porque a LC 214/25 ampliou as espécies de combustíveis incluídos no regime monofásico. Enquanto o art. 2º da LC 192/22 estabelece a incidência única de ICMS somente para gasolina e etanol anidro combustível, diesel e biodiesel, e gás liquefeito de petróleo, inclusive o derivado do gás natural, o art. 172 da LC 214/25 ampliou o rol dos combustíveis sujeitos à tributação monofásica.
Apesar disso, vale destacar que algumas espécies de combustíveis continuam de fora da tributação monofásica. É o caso, por exemplo, do carvão, que não possui grande representatividade econômica.[3] Ou, ainda, dos lubrificantes. Conforme destacado por Antonio Alcoforado, a justificativa para a não inclusão dos lubrificantes no regime diferenciado pode ser atribuída a dois fatores: primeiro, a sua enorme variação de preço, que pode oscilar em até 400%; e, segundo, a diversidade de tipos de lubrificantes.
Combinados, esses dois fatores tornam muito difícil a fixação de uma única alíquota e uniforme em todo o país. Por essa razão, em discussão técnica que ocorreu durante a elaboração da reforma no âmbito do PAT-RTC (um grupo de trabalho cooperativo com participação da União, Estados e Municípios), decidiu-se não incluir os lubrificantes no regime previsto no art. 172 da LC 214/25. Essa decisão foi ratificada pelo Congresso Nacional.[4]
Alíquota uniforme
Outra característica fundamental do regime diferenciado de tributação dos combustíveis é a adoção de uma alíquota única uniforme em todo o território nacional. Essa alíquota é definida por unidade de medida (alíquota ad rem). Atualmente, no ICMS, por exemplo, a alíquota ad rem para a gasolina é de R$ 1,47 por litro, valor que vale para todo o Brasil.
Essa metodologia simplifica enormemente o cálculo do tributo, bastando multiplicar a quantidade de combustível pela alíquota ad rem. A definição da alíquota ad rem será publicada por meio de um ato conjunto do Ministério da Fazenda (para a CBS) e do Comitê Gestor (para o IBS), com base em uma metodologia de cálculo a ser definida por esses mesmos órgãos. A atualização dessa alíquota ocorrerá uma vez por ano, respeitando integralmente o princípio da anterioridade do exercício e nonagesimal.[5]
A não cumulatividade plena e o mecanismo de crédito
Um dos pilares centrais da reforma tributária é a não cumulatividade plena. Como já me manifestei em outra oportunidade, ao lado de Gabriela Conca, a não cumulatividade plena buscada pelo IBS e pela CBS deve atender aos seguintes parâmetros: “(i) regime uniforme de devolução de créditos acumulados em prazos curtos, desonerando, inclusive, os investimentos; (ii) não incidência do IBS sobre as exportações e (iii) tomada de crédito financeiro integral, com exceções apenas às aquisições para uso e consumo pessoal”[6].
No tocante aos combustíveis, é necessário distinguir ao menos dois cenários: o primeiro, atinente à produção e comercialização do próprio combustível, e o segundo, atinente à utilização do combustível como insumo para a produção de outros bens. Relativamente ao primeiro cenário, a LC 214/25, em seu art. 180, veda a apropriação de créditos em relação às aquisições de combustíveis sujeitos à incidência do IBS e da CBS quando destinadas à distribuição, à comercialização ou à revenda.
O racional que ilumina essa vedação é um só. Como no regime monofásico a tributação ocorre integralmente no início da cadeia econômica, nas saídas subsequentes do produto não há débito a pagar. É dizer: como não há débito a pagar, também não há direito ao acúmulo de créditos. Daí por que a lei veda a tomada de crédito por aqueles participantes da cadeia que adquirem o combustível para revenda, o que inclui distribuidores e postos revendedores.[7]
Relativamente ao segundo cenário, a LC 214/25 assegura a não cumulatividade de forma ampla e irrestrita. Conforme o § 1º do art. 180 da LC 214/25, “Excetuadas as hipóteses previstas no caput deste artigo [aquisição de combustível sujeito à incidência única do IBS e da CBS destinado à distribuição, comercialização ou revenda], o contribuinte no regime regular poderá apropriar créditos do IBS e da CBS em relação à aquisição de combustíveis, nos termos do § 4º do art. 47 desta Lei Complementar.”
Isso quer dizer que se o combustível for adquirido para o exercício da atividade empresarial do contribuinte, terá ele direito ao crédito. Esse é o caso, por exemplo, de uma transportadora que adquire combustível para abastecer a frota de veículos utilizados na sua atividade. Justamente porque o combustível não é adquirido para ser posteriormente distribuído, comercializado ou revendido, a transportadora tem direito ao crédito correspondente ao IBS e à CBS pagos na fase inicial da cadeia. O mesmo racional vale para a indústria que compra combustível para utilizar como insumo em sua produção. A tomada de crédito, contudo, é vedada se o combustível for adquirido para uso pessoal.
Em suma, nos termos da LC 214/25, a incidência de IBS e CBS sobre o combustível que “orbita a cadeia” (transporte, frete, armazenamento, insumos, etc) assegura o direito ao crédito. Entendimento diverso criaria um custo adicional a ser repassado ao consumidor final, em nítida contradição com a finalidade perseguida pela reforma tributária – garantir a tributação somente do valor agregado.[8]
Benefícios e simplificação do novo regime
O regime específico de combustíveis, com sua incidência monofásica e alíquota ad rem nacional uniforme, traz uma simplificação enorme em comparação aos regimes anteriores. A metodologia de cálculo do tributo se torna muito mais simples.[9]
Essa simplificação e a garantia da não cumulatividade plena resultam em uma diminuição significativa na complexidade da tributação. Várias teses jurídicas e litígios que existiam anteriormente, muitos decorrentes de questões como a vedação de crédito e a substituição tributária plurifásica, perderão o objeto com o novo regime. Atualmente, por exemplo, há discussões judiciais sobre a vedação de crédito em convênios de ICMS que a reforma resolve.[10]
O novo sistema também endereça problemas específicos do setor, como a complexidade na distribuição da receita do ICMS para os biocombustíveis, que atualmente é dividida entre o estado de origem e o estado de destino. Com o IBS e a CBS, a arrecadação será integralmente direcionada para o estado de destino (consumo), simplificando os repasses e diminuindo litígios relacionados à bitributação nessa distribuição.[11]
Outra melhoria é a possibilidade de as empresas tomarem crédito pelo ISS pago em serviços adquiridos, o que não ocorre amplamente no sistema atual e que impacta a carga tributária.
A reforma, ao promover maior transparência sobre a carga tributária (com a alíquota ad rem clara por unidade), e ao garantir a não cumulatividade plena, tem o potencial de melhorar o ambiente de negócios, aumentar a segurança jurídica e promover uma competitividade mais justa. Fábio Alves, representante da indústria de distribuição, ressalta que a otimização de recursos fiscais proporcionada pelo modelo mais simples e racional tende a trazer otimização para toda a cadeia, inclusive para o consumidor final.
O fim do acúmulo de créditos e da necessidade de complementos ou restituições – problemas vivenciados no modelo anterior, especialmente após decisões judiciais como o Tema 201 do STF, em que o Tribunal decidiu que “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida” – é visto como um “super ganho” que tende a terminar.[12]
A reforma também é vista como um instrumento no combate à sonegação fiscal e fraudes. A transparência da alíquota ad rem dificulta o subfaturamento. A previsão do split payment (pagamento do tributo diretamente ao ente público na operação) é apontada como um fator que diminuirá sobremaneira a sonegação. Além disso, a fiscalização será fortalecida com a participação de auditores municipais, além dos estaduais e federais. A Fundação Getúlio Vargas estima bilhões de reais em perdas por fraudes e sonegação no setor, e a reforma busca diminuir essas brechas.[13]
Desafios e pontos de atenção
Apesar dos avanços, existem desafios e pontos que geram preocupação no setor. Entre eles, merece destaque a não tributação de alguns combustíveis quando destinados para a indústria de refino de petróleo localizado na Zona franca de Manaus.
O art. 441, alínea e, da LC 214/25 prevê que “não estão contemplados pelo regime favorecido da Zona Franca de Manaus (…) e) petróleo, lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo, exceto para a indústria de refino de petróleo localizada na Zona Franca de Manaus, em relação exclusivamente às saídas internas para aquela área incentivada, desde que cumprido o processo produtivo básico, permanecendo a vedação para todas as demais etapas”. Conforme Fábio Alves, tal dispositivo tem gerado desconforto no setor.
Isso porque, historicamente, desde o DL 288/67, petróleo, lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo, não eram contemplados pelos incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus (art. 3º, § 1º e art. 37 do DL 288/67), o que foi explicitado pela Lei 14.183/2021 e confirmado pelo STF na ADI 7239, em que se fixou a tese de que “é constitucional o dispositivo de lei federal que tão somente explicita a extensão dos benefícios fiscais concedidos à Zona Franca de Manaus pelo Decreto-Lei 288/1967, em sua redação original.” A EC 132/23, no art. 92-B do ADCT, manteve os incentivos da Zona Franca de Manaus existentes até 31 de maio de 2023.[14]
Ocorre que o art. 441, alínea e, da LC 214/25 parece criar um tratamento diferenciado onde antes não havia, o que pode ser visto, como antecipado por Fábio Alves, como a criação de um benefício fiscal adicional, que contraria a lei anterior, a decisão do STF e a própria EC 132/23 que buscava apenas manter os benefícios existentes, não aumentá-los. Antônio Alcoforado corrobora essa visão, afirmando que houve um aumento do benefício, e que essa mudança foi feita no Senado e recebeu oposição de quase todos os estados no Confaz, exceto o Amazonas.[15]
O principal risco prático da exceção prevista no art. 441, alínea e, da LC 214/25 é a distorção competitiva caso o combustível beneficiado saia da Zona Franca de Manaus para outros estados sem a devida tributação. Isso criaria uma competição desleal com aqueles que produzem em outras regiões do país.
Daí a necessidade de que o ponto seja objeto de cuidado exame e regulamentação, uma vez que “o poder regulamentar não pode inovar originariamente na ordem jurídica, pois segundo o revigorado princípio da legalidade que rege o Sistema CBS/IBS a lei complementar será a única fonte primária da CBS/IBS (LC214 e a lei complementar que advir do PLP108).”[16]
Conclusão
A reforma tributária representa um avanço substancial para o setor de combustíveis ao instituir um regime específico baseado na incidência monofásica e alíquota ad rem uniforme nacional. A garantia da não cumulatividade plena para o uso empresarial, a simplificação do cálculo e das obrigações acessórias, a redução do contencioso, e o aumento da transparência e segurança jurídica são benefícios significativos. Esses elementos tendem a melhorar a competitividade e combater certas formas de fraude e sonegação.
Embora desafios persistam, como a luta contínua contra fraudes complexas e a preocupação específica com o dispositivo da Zona Franca de Manaus que é visto como potencialmente inconstitucional e gerador de distorções competitivas, o saldo geral é de otimismo bem informado (pelos princípios e regras constitucionais que emolduram o design do novo modelo).
A reforma estabelece um fundamento constitucional e institucional para um sistema tributário mais racional e justo, construído em um exercício de federalismo cooperativo e com o protagonismo dos agentes fiscais. A expectativa é que essa base sólida, aliada a uma regulamentação adequada, impulsione não apenas o setor de combustíveis, mas a economia brasileira como um todo, abrindo caminho para um ambiente de negócios mais previsível e competitivo e fomentando uma nova cultura de cidadania fiscal.
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[1]Artigo elaborado a partir de notas taquigráficas da entrevista com Rodrigo Caldas: “A experiência institucional da “nossa Reforma Tributária”: a sociedade como protagonista de políticas públicas” Série Nossa Reforma Tributária. Disponível no Youtube:
e da entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis” Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11. Disponível no Youtube:
[2]Rodrigo Caldas: “A experiência institucional da “nossa Reforma Tributária”: a sociedade como protagonista de políticas públicas” Série Nossa Reforma Tributária.Disponível no Youtube e da entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis” Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.Disponível no Youtube
[3]Rodrigo Caldas: “A experiência institucional da “nossa Reforma Tributária”: a sociedade como protagonista de políticas públicas” Série Nossa Reforma Tributária.Disponível no Youtubee da entrevista com Antonio Alcoforado e Fabio Alves: “O que muda no setor de combustíveis” Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.Disponível no Youtube
[4]Cf. Entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis”. Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.
[5]Idem, ibidem.
[6]SANTI, Eurico Marcos Diniz de.; CONCA, Gabriela de Souza. “A lei complementar do IBS em pauta. Um convite ao debate do texto de lei que regulamenta o novo imposto objeto da PEC45”.Jota. 26.06.2019. Disponível em: <https://www.jota.info/artigos/a-lei-complementar-do-ibs-em-pauta>
[7]Cf. Entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis”. Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.
[8]Cf. Entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis”. Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.
[9]Idem, ibidem.
[10]Idem, ibidem.
[10]Idem, ibidem.
[11]Idem, ibidem.
[12]Cf. Entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis”. Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.
[13]Idem, ibidem.
[14]Idem, ibidem.
[15]Cf. Entrevista com Antônio Alcoforado e Fábio Alves: “O que muda no setor de combustíveis”. Série Nossa Reforma Tributária. Aula 11.
[16]SANTI, Eurico Marcos Diniz de. “Comitê gestor e o alvorecer de uma nova administração tributária. O marco histórico na construção da reforma tributária foi a inédita integração entre a União, os estados e os municípios.”Jota. 31.03.2025. Disponível em: <https://www.jota.info/artigos/comite-gestor-e-o-alvorecer-de-uma-nova-administracao-tributaria
Eurico Marcos Diniz de Santi – Professor FGV, Mestre, Doutor (Phd), Prêmio Jabuti, Fundador do CCIF e do NEF/FGV e coautor intelectual da PEC45 (REFORMA TRIBUTÁRIA DO BRASIL).
Fonte: Jota