Consequências aos gestores públicos que não atenderem o marco do saneamento

A realização das eleições municipais voltou a atenção da população para as principais propostas dos candidatos em todas as frentes que terão um grande impacto cotidiano: saúde, educação, segurança e planejamento urbano, por exemplo.

Entretanto, os problemas de saneamento básico, embora de grande relevância para a sociedade, pouco foram abordados pelos candidatos – e menos ainda questionados pela população, em que pese o desenvolvimento dessa infraestrutura possa resultar em significativos retornos econômicos e, principalmente, sensível melhora na qualidade de vida dos cidadãos.

Um estudo do Instituto Trata Brasil estima, por exemplo, que os benefícios trazidos com a expansão do saneamento até 2040 podem ser muito significativos, com o potencial de gerar mais de R$ 1,4 trilhão em benefícios socioeconômicos para o Brasil em menos de 20 anos.[1]

Deve-se dizer que a relevância dos investimentos em saneamento básico, a partir da reforma da Lei Federal 11.445/2007, feita em 2020 e que inaugurou o Novo Marco do Saneamento Básico, vai além do potencial retorno econômico e da melhora na qualidade de vida a todos, pois também configura nova obrigação dos gestores públicos. Isso porque a referida lei definiu objetivos essenciais para a Administração Pública a serem cumpridos até 31 de dezembro de 2033: o acesso à água potável a 99% da população e a coleta e tratamento de esgoto para 90% da população.

A fixação em lei de um prazo para que todos os entes busquem uma significativa melhoria nos serviços de saneamento básico é facilmente justificável quando se coloca em perspectiva o panorama de cobertura atual.

De acordo com o Painel Saneamento Brasil do Instituto Trata Brasil, 15,80% da população brasileira não tem acesso a água potável e 44,50% também se vê privada da coleta de esgoto, resultando em 191.418 de internações totais e 2.306 óbitos por doenças por veiculação hídrica.[2] É estimado que o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha gastado cerca de R$87 bilhões com doenças de veiculação hídrica em 2022.

Nesse contexto, para além de impor metas de universalização aos gestores, é importante destacar que o novo marco também cuidou de reforçar a atividade regulatória e fiscalizatória sobre a prestação dos serviços de saneamento básico, a partir do novo protagonismo dado à Agência Nacional das Águas (ANA) e sua interação com as agência reguladoras subnacionais.

Um dos principais exemplos que materializa o fortalecimento na atividade de regulação é a inclusão do artigo 4°-A na Lei Federal 9.984/2000, lei de criação da ANA, o qual estabelece a competência da agência para editar normas de referência para a regulação do setor, nas atividades desempenhadas pelos entes reguladores subnacionais.

O intuito é fomentar a uniformização da atividade regulatória sobre os serviços de saneamento básico, a partir da adesão voluntária às normas de referência, o que é especialmente interessante para agências reguladoras ainda em processo de maturação, mas que já poderão – e provavelmente o farão, em muitos casos – contar com diretrizes de uma agência federal.

Deve-se destacar que a Norma de Referência 8/2024, publicada pela ANA, ao disciplinar especificamente o cumprimento das metas de universalização e sua comprovação pelos entes titulares do serviço, já indica algumas diretrizes mais concretas para que os entes subnacionais consigam acompanhar de maneira satisfatória as ações dos gestores em prol da universalização dos serviços dentro do prazo legal.

Nesta norma definiu-se, no art. 23, o Índice de cobertura de esgotamento sanitário (ICE), o Índice de atendimento de esgotamento sanitário (IAE), entre outros, como adequados para acompanhar a universalização dos serviços. Por sua vez, o art. 25 fixa diretriz de que o gestor deveria prever metas progressivas de expansão nos Planos Municipais e Regionais de Saneamento Básico, as quais deveriam ser acompanhadas por sistema de monitoramento da cobertura e do atendimento de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário, nos termos do art. 28.

Para além da ANA, deve-se destacar o papel das agências reguladoras subnacionais. Essas entidades continuam responsáveis pela fiscalização dos serviços de saneamento básico de um determinado grupo de entes, as quais poderão, a partir do novo marco, adaptar e aprimorar suas normas e práticas regulatórias com base nas normas de referência da ANA.

Além disso, e principalmente, é dever das agências reguladoras iniciar procedimento administrativo caso as metas de universalização não forem cumpridas, para “avaliar as ações a serem adotadas, incluídas medidas sancionatórias, com eventual declaração de caducidade da concessão, assegurado o direito à ampla defesa”, conforme previsto nos arts. 23 e 11-B, par. 7° do Novo Marco Legal do Saneamento.

Vale destacar o art. 23, inciso XIII, do Novo Marco, o qual estabelece a aplicação de “sanções previstas nos instrumentos contratuais e na legislação do titular” no caso de não cumprimento das metas, o que condiciona as especificidades das possíveis penalizações à legislação local de cada ente, podendo estas serem mais brandas ou mais severas conforme cada caso.

Portanto, em que pese o novo papel da ANA como indutora de uma uniformização da regulação dos serviços de saneamento básico, o que pode trazer mais clareza e acurácia aos entes reguladores subnacionais e aos próprios gestores, é preciso que o decisor fique atento às normas locais sobre responsabilização pelo eventual não cumprimento das metas de universalização, bem como às normas contratuais sobre o tema, caso os serviços sejam prestados indiretamente.

A segunda consequência da falta de enforcement para com os dispositivos do Novo Marco do Saneamento, por parte do gestor, seria a impossibilidade de receber apoio financeiro da União para realizar os investimentos necessários para a universalização dos serviços, em razão do que prevê o art. 50 da referida lei.

Deve-se dizer que, na maioria dos 5.570 municípios brasileiros, muito provavelmente a universalização até 2033 não será possível sem alguma ajuda do governo federal, mesmo que seja apenas por meio de linha de crédito facilitada, visto que uma expressiva quantidade de recursos é necessária para que essa infraestrutura pública esteja dentro dos padrões adequados de qualidade e cobertura[3]. Logo, para se impedir o surgimento de uma bola de neve que impeça a universalização dos serviços e cause responsabilização dos gestores, é preciso atender aos comandos do novo marco.

O referido art. 50 impõe várias condicionantes para que a União possa oferecer apoio financeiro aos entes subnacionais no setor do saneamento básico, mas o presente artigo irá destacar duas: (i) observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA e (ii) regularidade da operação a ser financiada, nos termos do inciso XIII do caput do art. 3º do novo marco.

Ou seja, o gestor precisará atender às normas de referência da ANA para receber apoio financeiro federal, mesmo que estas não sejam, em regra vinculantes, e também deverá garantir que a operação dos serviços de saneamento básico esteja regular, o que significa, por exemplo, que a companhia estadual de saneamento básico (CESB) não poderá estar operando de maneira informal, sem contrato.

Assim, restando brevemente esclarecido ao gestor a importância do apoio financeiro federal para a viabilidade da universalização do saneamento básico até 2033, bem como o novo regramento fiscalizatório e sancionatório em caso de não cumprimento das metas, espera-se observar uma maior adesão dos novos ou reeleitos gestores à temática nas eleições municipais que se aproximam. De toda a forma, reforça-se que o investimento em saneamento básico passa longe de ser um mero capricho, pois é um requisito básico de nossa existência digna.

FONTE: JOTA

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