Lei Eusébio de Queiroz: Uma Reflexão Necessária

No próximo dia 4 de setembro de 2022 completa-se cento e setenta e dois anos da promulgação da lei que entrou para a história brasileira como “Lei Eusébio de Queiroz”, em referência ao magistrado e ministro Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara.
 

A referida Lei foi promulgada em 1850 e significou o resultado de pressões internacionais, mais especificamente do Império Britânico, pelo fim do tráfico de vítimas africanas escravizadas.
 

Ao invés do que se possa pensar, não se deve concluir pela prevalência de um pensamento humanista ou iluminista sobre a continuidade de um sistema econômico cruel representado pelo sistema escravagista, mas da transição de um modelo de produção a outro. De qualquer modo, a Lei Eusébio de Queiroz representou o elo de uma cadeia de acontecimentos e de legislações que pouco a pouco representaram, no período, importantes passos rumo ao fim do terrível modo de produção racializado e baseado na mão de obra africana escravizada. legitimada pelas instituições da época e por teorias pseudocientíficas, como o racismo científico e o darwinismo social, que atingiram seu ápice nos séculos XIX e primeira metade do século XX.
 

A Lei Eusébio de Queiróz (Lei n° 581 de 4 de setembro de 1850) teve por objeto a repressão ao tráfico de africanos no âmbito do Império brasileiro e foi consequência da pressão dos ingleses sobre o Império brasileiro. Isso, pois, desde 1807, o governo inglês já havia proibido o comércio e o tráfico de pessoas escravizadas, africanas, bem como buscava o Império britânico abolir definitivamente, no plano internacional, a escravidão.
 

Para chancelar seu apoio à chegada da família real ao Brasil um ano após, em 1808, referido posicionamento contra o comércio de escravos marcou e influenciou o relacionamento entre ingleses e brasileiros, resultando na assinatura de um tratado entre o rei inglês, Jorge IV, e o português, D. João VI, e que proibiu o tráfico de escravos ao norte do Equador, além de criar comissões mistas competentes para o julgamento dos casos que envolvessem a apreensão e libertação de vítimas africanas resgatadas do tráfico.
 

Além disso, o reconhecimento da independência do Brasil, ocorrida em 1822, pelos ingleses, ficou condicionada ao compromisso brasileiro com a manutenção da proibição do tráfico escravista, do que resultou a assinatura de novo tratado no ano de 1826, ratificado pelo Brasil em 13 de março de 1827 e que manteve a referida proibição.
 

Em 1831, nova lei foi promulgada no Brasil, desta vez conferindo poderes aos magistrados para que pudessem reprimir ainda mais a entrada de africanos escravizados no Brasil, além de declarar livres todos os escravos em território nacional. Contudo, esta lei não se mostrou eficaz diante dos preços baixos praticados no comércio de escravos, na África, pela falta de repressão adequada, além da alta demanda de mão-de-obra escrava em curso no Brasil, na lavoura cafeeira. Esta lei, ora citada, de 7 de novembro de 1831, passou a ser conhecida como “lei para inglês ver”.
 

Em 8 de agosto de 1845, o Parlamento britânico aprovou o conhecido Slave Trade Suppression Act ou, ainda, Aberdeen Act, que permitia às navegações inglesas interceptar e apreender qualquer embarcação flagrada com transporte de pessoas escravizadas no Oceano Atlântico. Muito embora o Brasil tenha protestado alegando violação à sua soberania, optou por aprovar a Lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico de escravos no âmbito do Império brasileiro. São seus principais pontos:

  1. Qualquer embarcação brasileira, em qualquer local, ou embarcações estrangeiras em águas territoriais brasileiras, com pessoas escravizadas a bordo, seria considerada como situação de pirataria;
  2. Pessoas e tripulantes flagrados, seriam punidos;
  3. Eventuais pessoas escravizadas resgatadas seriam conduzidas aos terminais de origem ou a qualquer outro local fora do Império;
  4. Se impossível a medida acima, as vítimas seriam empregadas sob tutela do governo, jamais prestando serviços a particulares.

Algumas consequências podem ser identificadas a partir da Lei Eusébio de Queiroz: o incentivo à chegada de imigrantes ao Brasil, além da aprovação de leis posteriores voltadas à abolição, como a Lei de Acesso às Terras (1850); a Lei do Ventre Livre (1871); a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe (1885); e a Lei Áurea (1888).
 

Finalmente, cumpre chamar a atenção para duas reflexões importantes: em primeiro plano, chama a atenção que a Lei Eusébio de Queiroz resultou mais de pressões internacionais do que propriamente de um desejado avanço civilizatório do Brasil que, até os dias atuais, enfrenta graves problemas advindos do racismo estrutural, legado do regime escravagista que teve, no Brasil, o país que mais recebeu vítimas africanas escravizadas e arrancadas violentamente de suas raízes, de suas origens; e, ainda, podemos identificar a relação entre o direito natural à vida e à liberdade dos povos nativos, defendida com base no direito natural desde o século XV pela conhecida Escola Ibérica da Paz, que por seus pensadores sustentava as soberanias indígenas, e o nascimento de um direito internacional legitimado pela defesa dos povos originários dos vários continentes que sofreram o flagelo do colonialismo racista.
 

Daí a importância em se conhecer a verdade histórica e estabelecer as memórias a partir de diversas fontes. Afinal, como ensinou o ensaísta búlgaro, radicado na França, Tzvetan Todorov, não é a memória, isto é, a lembrança do passado, que deve ser sagrada, mas os valores que dela poderíamos tirar.

Flávio de Leão Bastos Pereira é professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie

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