Por um ambiente tributário menos hostil

Existem duas certezas nessa vida: morrer e pagar tributos. Essa frase não é nossa, mas uma coisa é certa: quem vende caixões e as pessoas tributaristas têm demanda infinita.

Então, por que será que ouvimos tantos boatos dizendo que tributário é para quem tem inteligência acima da média, para quem é fera em matemática ou que é uma área elitista? Não vamos fazer suspense. A resposta é o comportamento das pessoas. 

A rotina de uma pessoa tributarista exige uma série de competências técnicas, tais como alta precisão, conhecimento da legislação, análise crítica, princípios de contabilidade, objetividade e visão sistêmica, além de habilidades comportamentais que deem condições para que a pessoa possa lidar com pressões e situações de alta complexidade inerentes à própria atuação profissional.

Mas em que medida o ambiente pode interferir na nossa jornada profissional?

Há uns 7 anos atrás eu, Lígia, atuei em um escritório de advocacia que atendia grandes empresas. Na época, eu estava responsável por uma carteira de contencioso tributário de cerca de 250 processos, que, juntos, alcançavam mais de R$ 1 bilhão de reais. A minha equipe era basicamente composta por mim, um estagiário e um sócio que não estava muito preocupado com a gestão técnica dos processos, de modo que tanto a elaboração como a revisão das peças ficava sob a minha responsabilidade, salvo raras situações.

Para além da ausência de suporte técnico e psicológico, o ambiente de trabalho era excessivamente competitivo, o que ensejava posturas pouco éticas entre colegas e condutas absolutamente questionáveis. Tudo isso contribuía para uma jornada de trabalho exaustiva, decorrente das longas horas de dedicação para gestão da carteira e um volume de trabalho desarrazoado.

Aliado ao contexto tóxico em particular, havia questões externas inerentes ao próprio exercício da advocacia: expectativas elevadas dos clientes, alta pressão por resultados, desafios em torno da gestão de prazos, perfeccionismo e o medo de errar. Pensamentos intrusivos eram a regra: e se meu controle de prazo não estiver correto? E se a minha interpretação não estiver em consonância com o melhor entendimento doutrinário ou jurisprudencial? E se eu deixei passar algum detalhe que possa comprometer a entrega final? Como não havia uma dupla checagem, prática recomendada em qualquer área de atuação, havia uma dose extra de autocobrança.

Como em qualquer contencioso tributário, minha rotina envolvia controle de prazos, elaboração de peças, realização de despachos com as autoridades administrativas e judiciais e sustentações orais. Como a carteira era composta por um volume substancial de processos administrativos federais, constantemente lá estava eu em Brasília. 

Eis que em uma dessas viagens, voltada à sustentação oral no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em um processo bastante relevante tendo como pano a não cumulatividade de PIS e Cofins, iniciei minha fala resgatando os principais fatos. Ao passar para a etapa de mérito em si, em determinado momento, não consegui mais processar as informações: senti falta de ar, a visão ficou turva e as pernas bambearam. Apaguei e só não levei um tombo épico porque consegui sentar na cadeira logo atrás de mim. Algum tempo depois recobrei a consciência cercava de pessoas desconhecidas, e fui socorrida por bombeiros que estavam no local.

Esse foi um dos episódios que marcou uma longa e desgastante jornada de tratamento de um Burnout. Fato é que pedi demissão para cuidar da minha saúde mental e fiquei aproximadamente um ano praticamente afastada das atividades profissionais. Período dificílimo marcado pela vergonha, grandes reflexões e um senso de autocuidado que eu nunca havia tido até então. 

Muitos anos depois ingressei no jurídico tributário de uma empresa que possuía contrato firmado com o dito escritório no qual eu havia trabalhado. Adotei alguma represália com o escritório, agora parceiro? Claro que não. Mas fiquei abismada como o mundo dá mesmo grandes voltas.

Ultrapassados episódios extremos como o que eu vivi, me deparei ao longo dos meus quase 10 anos como advogada tributarista com diversas situações hostis no universo tributário. Seja assédios morais expressos e velados, comentários sexistas e toda uma gama de microagressões que, em um primeiro momento, passaram despercebidas, mas após um período de “digestão” do acontecimento, me dava conta de quão desrespeitosa fora a situação.

É claro que o cenário acima descrito não é a regra (será que realmente não é a regra?), mas mesmo em contexto de uma aparente normalidade, ainda há muito a se avançar, especialmente considerando a rigidez de pensamento ainda presente no tributário, influenciada, talvez, pela formalidade inerente à própria formação pautada no positivismo jurídico, e o papel que ele atua no direito tributário.

Eu, Verônica, decidi empreender depois do cansaço de ouvir frases tais como:

  • Se estiver achando ruim, é só pedir demissão.
  • Eu fiz um favor em te contratar, já que o candidato que estava em segundo lugar tinha mais de 10 anos nessa função enquanto você está começando agora.
  • Aqui é politicagem mesmo. Se não quiser aceitar, precisa sair do mundo corporativo.

Eu realmente saí e estou infinitamente mais feliz. Mas será que realmente pessoas precisam ser tratadas dessa maneira? Precisamos normalizar a comunicação violenta como regra? Modéstia à parte, o tributário perde talentos por questões comportamentais bizarras como essa. Imagine um mundo tributário onde as pessoas se ajudam e colaboram umas com as outras? Esse mundo já é real na minha formação que criei depois que comecei a empreender: a Formação Tributarista 10X.

Todos nós possuímos nossos vieses inconscientes e padrões de comportamento oriundos de nossa formação familiar, social e econômica. E o ambiente dos operadores do Direito que atuam com o tributário, a nosso ver, ainda valoriza sobremaneira determinados padrões de comportamento bastante ultrapassados. Alguns exemplos são a excessiva formalidade no trato social, baixa aceitação com os erros, supervalorização de atributos externos e rigidez nos códigos de vestimenta, o que leva a um elitismo que exclui, mesmo diante de um cenário que incentiva a diversidade e a inclusão.

A realidade nos mostra que houve avanços significativos nos últimos anos, especialmente pós-pandemia, que não podem ser menosprezados, os quais foram impulsionados por uma nova mentalidade incipiente nos negócios, muito em virtude do avanço da pauta de sustentabilidade e ESG e, principalmente, das muitas questões atreladas à pauta da saúde mental.

Nesse sentido, as lideranças e as instituições devem voltar o foco atencional a desenvolverem estratégias que tenham como objetivo implementar ações que contribuam com o efetivo bem-estar de seus colaboradores, passando pela análise da cultura, que deve ser voltada ao estabelecimento de um ambiente de trabalho saudável, de comunicação aberta, efetivamente colaborativo, que esteja aberto ao acolhimento e desenvolvimento do sentimento de pertencimento de diferentes grupos sociais minoritários ou minorizados, como é o caso das mulheres.

A nosso ver, apesar de todos os avanços, o tributário ainda é um ambiente pouco acolhedor e isso é ruim para todas as partes envolvidas. Ambientes hostis impactam não só a saúde, a autoestima e, em última análise, a produtividade. Hey, sócios de escritórios e líderes internos de empresas, lacunas de diversidade e queda na produtividade impacta a meta e o seu bolso, que, provavelmente, é seu órgão mais sensível.

Em tempos de amplas e profundas reformas tributárias, que estejamos mentalmente dispostos a reconhecer, enfrentar e transformar o universo tributário, para que ele seja mais leve, diverso e efetivamente acolhedor a todos os perfis. Porque, ao contrário do que muitos pensam, tax is cool! Tributário é para todas as pessoas, inclusive para você!

FONTE: Jota

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