Reconhecimentos irregulares continuam a desafiar a Justiça
Desobediência às regras do Código de Processo Penal provoca a prisão de inocentes
O motorista Rômulo Silva do Nascimento, de 35 anos, está preso desde 16 de agosto, quando foi ao Poupatempo retirar uma certidão de antecedentes criminais para começar no novo emprego de motoboy. Sem passagens pela polícia, ele descobriu que havia um mandado de prisão preventiva contra ele por supostamente ter participado de um assalto na manhã de 14 de fevereiro de 2022 a uma adega de Guarulhos. A polícia chegou até o motorista porque uma motocicleta usada no roubo está no nome de Rômulo. Com uma foto dele em mãos, submeteu as vítimas ao reconhecimento fotográfico dos criminosos, que usavam máscaras cirúrgicas e capuz. Das cinco testemunhas, duas o reconheceram, duas reconheceram outro suspeito e a quinta disse que não tinha condições de identificar o autor do crime.
Em depoimento à Justiça, Rômulo afirmou que vendeu a motocicleta em 2021 para um colega de trabalho por R$ 3 mil porque o veículo estava com muitas multas e ele não conseguiria mais trabalhar sem correr o risco de ser apreendida. “Ele não apresentou recibo da venda e o novo proprietário não fez a transferência, mas apresentou uma testemunha que presenciou a negociação e também apresentou testemunhas de que, no momento do crime, dormia em sua casa, em Itapecerica da Serra. Só que essas testemunhas não foram chamadas para depor na polícia”, explica a advogada criminalista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles.
O caso de Rômulo é mais um dentre centenas de prisões baseadas em reconhecimentos fotográficos feitos de forma irregular. Jacqueline explica que o procedimento deve seguir as regras previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal. “Vários estudos apontaram que há muitas falhas nos reconhecimentos, principalmente nos fotográficos, porque a memória das vítimas pode falhar, principalmente em episódios violentos. São frequentes os casos de erros do Judiciário originados por reconhecimentos falhos e, principalmente, por falta de cumprimento ao que determina o CPP. Isso levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a editar uma nova resolução sobre o tema e gerou jurisprudências nos tribunais superiores”, explica.
Processo de reconhecimento feito por meio de videoconferência
Estudos
A fragilidade do reconhecimento fotográfico e o impacto na Justiça são amplamente estudados. Em outubro, o Rio de Janeiro sancionou uma lei que impede que o reconhecimento fotográfico seja usado como única prova em pedidos de prisão de investigados. Pela regra, a prisão de um suspeito deve ser embasada por outros indícios de autoria e materialidade. A redação da nova lei está amparada em um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), em conjunto com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais, que revelou que, de 2012 a 2020, foram registradas ao menos 90 prisões injustas baseadas no reconhecimento fotográfico. Deste total, 81% dos acusados eram negros. Para estudiosos, os dados revelam a influência do racismo estrutural nos reconhecimentos.
A jurista e mestre em Direito Penal, Jacqueline Valles
Regras
A mestre em Direito Penal explica que a apresentação de uma única foto para a vítima e a apresentação de imagens em celulares são algumas das maiores falhas ocorridas no processo de reconhecimento. O CPP determina que, antes de submeter uma testemunha ao reconhecimento, o policial precisa questionar sobre as características do acusado e verificar se a pessoa pode reconhecer ou se está em um estado alterado, algo muito comum em vítimas de crime. “Além de ter que apresentar quatro pessoas com características semelhantes, a autoridade policial não pode afirmar que o acusado está entre as pessoas. Via de regra, essas normas não são cumpridas nas delegacias de polícia. Os erros no procedimento feito em uma delegacia acabam sendo validados em tribunais, mesmo que estes sigam as regras. Isso acontece porque a testemunha já está condicionada pelo reconhecimento feito anteriormente. O resultado é uma enorme quantidade de erros judiciais baseados em um procedimento equivocado”, completa.