Reforma tributária: um texto a ser revisto e aprimorado

Regulamentação pendente é oportunidade para eventual correção de alguns pontos da LC 214
Muito se tem debatido sobre a regulamentação da reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional 132/2023. Até o momento houve apenas a aprovação da Lei Complementar 214/2025.

As eleições gerais para 2026 devem permear boa parte da pauta do Congresso Nacional, sendo recomendável que se adie o início da transição para o novo sistema tributário, tendo em vista a necessidade de vasta regulamentação da matéria, que deve ser precedida de efetivo debate com a sociedade, academia e poder público, inclusive sob a ótica dos impactos no contencioso administrativo e judicial.

O cenário de regulamentação ainda pendente é uma oportunidade para ponderação e eventual correção de alguns pontos da LC 214 – inclusive para que sejam resguardados os princípios norteadores da reforma tributária, em especial simplicidade e justiça tributária.

Não cumulatividade do IBS e da CBS

A EC 132 previu a não cumulatividade do IBS e da CBS ao estabelecer que serão compensados com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas na Constituição.

A Lei Complementar disporá sobre o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do tributo, desde que esse recolhimento possa ser efetuado pelo adquirente ou ocorra na liquidação financeira da operação.

Vê-se, aqui, que a regra geral é a compensação do IBS e da CBS com os tributos cobrados sobre todas as operações de aquisição, de modo que a exceção é a condição de verificação do efetivo recolhimento do tributo.

O art. 47 da LC 214 preceitua que a apropriação dos créditos do IBS e da CBS ocorrerá quando houver a extinção dos débitos por qualquer das modalidades previstas no art. 27: compensação com créditos, pagamento pelo contribuinte, recolhimento na liquidação financeira da operação (split payment) ou pagamento por aquele a quem a LC atribuir responsabilidade.

Ao tornar regra a exigência de liquidação dos débitos para fins de efetividade da não cumulatividade do IBS e da CBS, o art. 47 contraria a diretriz da reforma tributária nos termos da EC 132.

Já o art. 48 da LC aduz que ficará dispensado o requisito de extinção dos débitos para fins de apropriação dos créditos do IBS e da CBS, exclusivamente, se não for implementada a modalidade de recolhimento na liquidação financeira (split payment) ou recolhimento pelo adquirente.

A regra aí soa absolutamente inócua. Atualmente, é difícil imaginar operações que não estejam submetidas ao split payment, visto o volume de transações envolvendo a participação de prestadores de serviços de pagamento eletrônico e instituições operadoras de sistemas de pagamentos.

A outra opção – não ser implementada a liquidação através de recolhimento pelo adquirente – será aplicável apenas quando o pagamento ao fornecedor for efetuado mediante instrumento que não permita a segregação e o recolhimento do IBS e da CBS. Seria aplicável ao mercado informal ou a pagamentos em espécie, por exemplo? A aplicabilidade da regra parece bastante restrita.

O que se verifica é que a LC distorceu a regra de não cumulatividade instituída pela EC 132 na reforma tributária.

Split payment e a devolução dos valores aos contribuintes

split payment representará a imediata liquidação da obrigação tributária, com o repasse do IBS ao Comitê Gestor e da CBS à Receita Federal, de modo que o fornecedor receberá o valor líquido da operação. Mas e se o fornecedor detiver créditos acumulados do IBS e da CBS? Ou se a operação realizada supostamente não estiver sujeita à incidência dos tributos?

No caso de acúmulo de créditos, situação experimentada pelas empresas exportadoras, o contribuinte deverá pleitear o ressarcimento dos créditos do IBS e da CBS que não puderem ser compensados, observando prazos de até 180 dias.

O impacto sobre o fluxo de caixa das empresas será brutal. E é provável que os prazos não sejam observados pelo Comitê Gestor do IBS e pela Receita Federal, bastando ter em mente a atual quantidade de processos judiciais na Justiça Federal em razão da inobservância do prazo previsto no art. 24 da Lei 11.457/2007. E, caso seja iniciado procedimento de fiscalização relativo ao pedido de ressarcimento, os prazos de devolução serão suspensos até o encerramento do procedimento.

Portanto, o contribuinte permanecerá financiando a ineficiente máquina pública via split payment enquanto permanecerá na fila da repartição pública para ressarcimento dos valores pagos a mais a título do IBS e da CBS. Esse cenário nos faz lembrar da malsinada cláusula solve et repete.

A situação será igualmente peculiar quando houver questionamento judicial sobre a cobrança do IBS e da CBS sobre determinada operação. A primeira dúvida é a seguinte: em uma das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, na forma do art. 151 do CTN, qual seria o impacto sobre a não cumulatividade do IBS e da CBS?

Se, por exemplo, o fornecedor de determinado bem ou serviço questionasse a incidência do IBS e da CBS, com a obtenção de decisão judicial que suspendesse a exigibilidade do crédito tributário, como ficaria o creditamento do adquirente? Sendo respeitada a regra da EC 132 de tributo cobrado na operação para fins de crédito, não haveria impacto. Ocorre que a distorção criada pela LC 214 poderá impedir o creditamento do IBS e da CBS pelo adquirente em razão da ausência de recolhimento.

Sindicalização da não cumulatividade

Os bens de uso ou consumo pessoal não permitem a apropriação de créditos do IBS e da CBS. Porém, o parágrafo 3° do artigo 57 da LC 214 assevera que não são bens e serviços de uso ou consumo pessoal aqueles utilizados preponderantemente na atividade econômica do contribuinte, de acordo com determinados critérios, dentre os quais, constam: (i) serviços de planos de assistência à saúde e de fornecimento de vale-transporte, de vale-refeição e vale-alimentação destinados a empregados e seus dependentes em decorrência de acordo ou convenção coletiva de trabalho, e (ii) benefícios educacionais a seus empregados e dependentes em decorrência de acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Há uma espécie de sindicalização da não cumulatividade do IBS e da CBS, pois o direito ao crédito estará condicionado a concessão de tais benefícios na forma de acordo ou convenção coletiva de trabalho.

A condição de sindicalização jamais poderia impactar na efetividade da não cumulatividade do IBS e da CBS, pois não raras vezes se utilizará da negativa de aprovação de acordo ou convenção coletiva como moeda de troca nas negociações.

Cabe mencionar os inúmeros precedentes do CARF sobre a cobrança de contribuições previdenciárias em virtude da não aprovação de metas e critérios dos planos de participação nos lucros e resultados pela ausência de participação do sindicato na negociação das condições do acordo ou convenção coletiva, em que pese as provas de notificação dos sindicatos pelas empresas.

Conclusão

O aprimoramento das leis exige debate e a intensa participação de todos os interessados, sobretudo em razão da relevância das alterações trazidas pela EC 132/2023 e seus impactos sobre a sociedade e atividades econômicas.

Há ainda outros pontos de inflexão sobre a LC 214 e muitos mais surgirão à medida que forem aprovadas as regulamentações da reforma pelo Congresso Nacional.

É importante permanecermos atentos, debatendo ideias de forma republicana, buscando dar efetividade aos princípios constitucionais nas regulamentações da reforma tributária, e observando a máxima de que as leis devem ser interpretadas e aplicadas à luz das normas constitucionais, e não o inverso.

Renato Lopes da Rocha – Sócio do Campos Mello Advogados

Fonte: Jota

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