Tribunais de Contas e o limite do controle: entre a fiscalização e a intervenção administrativa

É necessário delimitar as competências dos TCs visando respeitar a autonomia administrativa e preservar a segurança jurídica

A crescente atuação dos Tribunais de Contas sobre atividades regulatórias levanta um debate relevante e atual no âmbito do Direito Administrativo: estariam essas Cortes assumindo um papel de “Justiça administrativa”? Embora os Tribunais de Contas exerçam controle externo previsto constitucionalmente, há casos em que sua intervenção parece exceder os limites institucionais, invadindo a esfera discricionária da administração ou, mais gravemente, interferindo em contratos administrativos em curso.

Um exemplo emblemático é a atuação do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) no processo de contratação da Organização Social Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim (CEJAM)[1], em que houve uma intervenção direta em etapa interna de seleção para prestação de serviços médicos.

Em apertada síntese, as entidades sem fins lucrativos que desenvolvem parcerias com a Administração Pública não devem licitar, contudo, seus processos internos de contratação precisam respeitar os princípios da Administração Pública previstos no artigo 37, caput, da Constituição Federal, ou seja, legalidade, impessoalidade, moralidade, probidade e eficiência.

Pois bem, o Manual de Compras e Contratações da entidade é, além de técnico, mais detalhado que a própria Lei de Licitações, inserindo requisitos técnicos de avaliação, como melhor preço e considerando para fins de avaliação pontuação inerente à experiência técnica da equipe da empresa a ser contratada, garantindo que os cidadãos tenham um atendimento de qualidade. Dessa forma, urge a discussão: essa intervenção é justificada pelo interesse público ou representa um excesso de controle?

O Tribunal de Contas da União e seus congêneres estaduais têm ampliado significativamente seu campo de atuação. A fiscalização contábil, financeira e patrimonial prevista no artigo 70 da Constituição Federal vem sendo complementada por um controle operacional, que se ocupa de avaliar a eficiência, economicidade e efetividade das ações administrativas.

Como destacam Marques Neto e Palma[2], esse controle se dá num “diálogo fora de esquadro”, uma vez que nem as agências reguladoras nem os Tribunais de Contas foram moldados pela Assembleia Constituinte de 1988 para interagir da forma como hoje ocorre.

A doutrina tem apontado que o TCU, por exemplo, deixou de ser um mero controlador e passou a agir como “cogestor” da administração, conforme analisam Portugal Ribeiro e Jordão. Para eles, o tribunal deveria ser avaliado com os mesmos critérios que se impõem à administração direta, dada a sua crescente interferência no conteúdo de políticas e decisões administrativas.[3]

No caso concreto da intervenção do TCE-SP num processo de contratação do CEJAM[4], a Corte suspendeu um procedimento interno de seleção, mesmo sem a formalização do contrato. Essa medida levanta preocupantes questionamentos. O contrato envolvia um ente privado, no âmbito de um modelo de parcerias adotado em diversos estados e municípios. Ao intervir na fase interna do processo, o órgão antecipou-se ao controle posterior e, ao fazê-lo, comprometeu a celeridade e a continuidade do serviço público.

Poderia a Corte ter aguardado a formalização da contratação para exercer seu papel fiscalizatório, conforme autoriza o artigo 71, II, da Constituição Federal. Essa atuação preventiva, embora justificável em situações de manifesta ilegalidade, pode se revelar desproporcional quando baseada apenas em indícios ou interpretações questionáveis.

Como bem alerta Sundfeld, não cabe ao Tribunal de Contas “revisar decisão puramente regulatória” ou interferir em atos administrativos cujo objeto extrapole a matéria financeira. Sua competência de comando é limitada às ilegalidades em matéria contábil, financeira, orçamentária ou patrimonial. Quanto às demais matérias, cabe-lhe apenas emitir recomendações e representações.[5]

A substituição da discricionariedade administrativa pela interpretação técnica do controle gera o “apagão das canetas”. Gestores públicos, temendo futuras responsabilizações, tornam-se excessivamente conservadores, retardando ou evitando a tomada de decisões fundamentais para a execução de políticas públicas. Tal fenômeno compromete não apenas a eficiência administrativa, mas também a própria governabilidade.

O Supremo Tribunal Federal, embora reconheça a importância do controle externo, tem reiterado que os Tribunais de Contas não detêm competência para anular contratos ou substituir o mérito administrativo. No julgamento da ADI 1.668, o STF reafirmou a autonomia das agências reguladoras, inclusive quanto à tomada de decisões técnicas.

Marques Neto e Palma propõem, em seu artigo, uma reforma normativa que melhor estruture a relação entre Tribunais de Contas e entidades reguladoras, com limites mais claros e regras mais previsíveis. A ideia não é limitar o controle, mas garantir segurança jurídica e respeitar a autonomia da gestão administrativa. O mesmo se aplicaria ao terceiro setor, pois a decisão, embora inédita, pode causar danos irreparáveis para a saúde pública brasileira.

O controle exercido pelos Tribunais de Contas é essencial à democracia e à boa governança. Sua função de garantir a legalidade, a economicidade e a moralidade administrativa é inegociável. No entanto, a evolução recente da atuação dessas cortes, em especial nas áreas reguladas e nas parcerias com o terceiro setor, tem gerado tensões relevantes no desenho institucional do Estado brasileiro.

O caso do CEJAM é emblemático de como uma atuação preventiva e desproporcional pode gerar efeitos deletérios. O tribunal comprometeu não apenas a autonomia da entidade, mas também a continuidade e a eficiência do serviço público de saúde. Isso demonstra como a ausência de limites objetivos pode produzir insegurança jurídica e interferir indevidamente em políticas públicas sensíveis.

De forma semelhante, a atuação dos Tribunais de Contas sobre agências reguladoras — como já debatido por autores como Azevedo Marques e Palma — acentua o risco de captura institucional e engessamento técnico. Quando essas agências são constantemente submetidas à revisão de suas decisões técnicas por órgãos de controle, fragiliza-se sua independência decisória, essencial para que possam operar com base em critérios científicos e regulatórios, e não sob a pressão de eventuais interpretações administrativas posteriores. O resultado é o enfraquecimento da regulação setorial e o descrédito da governança técnica.

O terceiro setor, por sua vez, tem sido igualmente impactado por um controle que nem sempre compreende as especificidades do modelo de parceria público-privada sem fins lucrativos. A fiscalização de contratos de gestão é fundamental, mas exige ponderação, especialmente quando se trata de organizações que atuam na ponta da prestação de serviços sociais, como saúde e assistência. A exigência de procedimentos análogos à licitação podem desvirtuar o modelo, cuja lógica é justamente a da flexibilidade e da atuação por metas, resultados e qualificação técnica.

Urge, portanto, rediscutir o papel dos Tribunais de Contas na administração contemporânea. É necessário delimitar suas competências com base em critérios de legalidade estrita, respeitar a autonomia administrativa e preservar a segurança jurídica. O fortalecimento institucional dos órgãos de controle deve vir acompanhado da consciência de que a substituição do juízo administrativo pelo juízo técnico do controle — quando abusiva — pode comprometer justamente aquilo que se pretende proteger: a boa Administração Pública.

A construção de uma Justiça administrativa eficaz passa pelo equilíbrio. Não se trata de reduzir a força dos Tribunais de Contas, mas de reconhecer que a eficácia do controle não está em sua ubiquidade, mas na sua responsabilidade institucional e na sua capacidade de respeitar o espaço legítimo das decisões administrativas.


[1] TC n° 00004232.989.25-1.

[2] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Diálogos fora de esquadro: o controle das agências reguladoras pelo Tribunal de Contas da União. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 120, p. 203-236, jan./jun. 2020. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2020V120P203.

[3] RIBEIRO, Maurício Portugal; JORDÃO, Eduardo. O TCU atua como gestor público; tratemo-lo como tal!. JOTA, 13 nov. 2018. Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/o-tcu-atua-como-gestor-publico-tratemo-lo-como-tal-13112018. Acesso em: 24 mar. 2025.

[4] TC n° 00004232.989.25-1

[5] SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O Tribunal de Contas da
União e a Regulação in Fórum de Contratação e Gestão Pública, vol. 194. Belo
Horizonte: Fórum, 2018.

Gabriela Rosa Pereira da Silva Alves de Moraes – Advogada especialista em Licitações e Contratos Administrativos pela PUC-MG, em Gestão e Projetos no Terceiro Setor pela PUC-SP, em Direito Administrativo pela FGV-SP e membro da Comissão Especial do Direito do Terceiro Setor da OAB-SP. Sócia administradora do escritório GM Advogados em São Paulo

Fonte: Jota

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