Exportação de animais vivos viola direitos e pode promover novas pandemias

Ao enviar animais para serem abatidos no exterior, Brasil é um dos principais mercados dessa atividade precária, vetada em diferentes países

Apesar de o vírus causador da pandemia de Covid-19 ter se tornado evidente no fim de 2019, os coronavírus já eram conhecidos há bem mais tempo pelos especialistas por sua alta capacidade de mutação. O público pouco sabe, no entanto, que eles são uma presença comum entre os animais transportados vivos entre países – e essa é só uma das problemáticas envolvendo esse tipo de comércio. 

Ainda na década passada, uma pesquisa publicada em 2008 mostrou que 13% dos bovinos que viajam em navios para serem abatidos em outros territórios possuíam algum tipo de coronavírus. Desde então, o problema ganhou novos contornos. 

Em 2019, às vésperas da pandemia de Covid-19, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) descobriu que esse tipo de vírus estava entre as dez infecções mais comuns entre os animais exportados vivos pelo mundo.

O pesquisador de medicina veterinária na Universidade de Ghent, na Bélgica, Jeroen Dewulf, é autor de diversos estudos na área e afirma: “Existem vários fatores de propagação de doenças, mas os animais vivos são a maior fonte de infecção”. Segundo ele, alguns organismos podem ser transmitidos pela carne, “mas é muito mais eficiente a propagação por animais”.

A questão é tão preocupante que, por esse e motivos de bem-estar animal, países mundo afora têm restringido a exportação de animais vivos. Os mais recentes deles foram o Reino Unido e a Austrália. Recentemente, a câmara alta britânica aprovou um projeto de lei com proibições à prática; e o governo australiano prevê zerar a exportação de ovelhas até 2028

Com isso, o assunto pode tomar novo fôlego no debate público. 

Menor custo humano, alto preço animal

As estimativas dão conta que cerca de 10,8 milhão de animais tenham sido exportados vivos no mundo em 2021, de acordo com a base de dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Desse total, somente dos portos brasileiros, saíram mais de 80 mil em direção a outros países. 

Existem diferentes motivações para esse tipo de comércio. Mas, em sua maioria, as nações que encomendam animais vivos, o fazem pela conveniência logística e baixo custo – e encontram mercados como o brasileiro para atender a essa demanda. Enquanto a exportação de carne necessita de um complexo frigorífico bem gerenciado, o transporte de animais pode ser realizado sem maiores dificuldades para os humanos à primeira vista. 

Além dos reflexos na saúde pública, a conta final recai sobre o sofrimento animal. De acordo com dados reunidos pela organização internacional Mercy For Animals, mais da metade da frota que transportou animais vivos a partir do Brasil entre 2015 e 2021 foi constituída por navios com mais de 30 anos de serviço e cerca de 90% deles não foram originalmente projetados para essa finalidade.

Como consequência, em 43% dos embarques realizados entre 2011 e 2015 houve superlotação. No período, cada um dos 400 mil bois foram forçados a viver confinados em um espaço menor que o tamanho de uma porta por no mínimo duas semanas, inclusive sob condições climáticas adversas, até chegar ao local de destino. 

Expedição mortal

“Nessas condições, a limpeza recorrente fica praticamente impossível, o que faz eles ficarem em meio às fezes e urina que se acumulam”, aponta relatório do Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal.

Os cascos ficam fissurados e processos inflamatórios podem começar, causando hemorragias e infecções. Além disso, a camada de sujeira no couro altera a regulação térmica corporal do animal. 

Com isso, o sistema imunológico é afetado e agrava problemas respiratórios causados pelo ar tomado pela amônia e o metano derivados da urina e dos gases. “É quando surge a chamada doença respiratória bovina, o equivalente à pneumonia em humanos”, conclui o Fórum.

Um relatório produzido em 2017 acompanhou a exportação de mais de 63 mil ovelhas da Austrália, um dos maiores comerciantes de animais vivos do mundo, para o Kuwait. A viagem, que durou 21 dias, matou cerca de 2,4 mil animais. 

Nos últimos sete dias de viagem, a temperatura dentro dos compartimentos de transporte ultrapassou os 36 graus, considerado o limite de estresse suportado pelas ovelhas. Além da tortura pela qual os animais passaram, as condições podem ter custado até US$ 300 mil de prejuízo para os exportadores.

Acidentes e naufrágios também são possibilidades recorrentes nesse tipo de situação. Em 2009, o navio MV Danny naufragou no Líbano, matando 18 mil bovinos e 10 mil ovelhas a bordo. Em outubro de 2015, em Barcarena, no Pará, um navio de bandeira libanesa carregado com 5 mil bovinos da empresa brasileira Minerva Foods naufragou ainda no porto. 

“Chegando ao local, é comum que os animais precisem passar por um período de quarentena”, explica Artur Arantes, assistente de pesquisa do Insper Agro Global, em artigo publicado pelo instituto.

Segundo ele, a relevância do mercado de animais vivos permanece, sobretudo por questões de logística. “Há o interesse de frigoríficos locais em manter processos produtivos específicos e por isso importam animais para o abate nacional”, explica. “Mas também existem mercados importadores que recebem esse tipo de carga simplesmente por não terem estrutura adequada para recepcionar, industrializar e comercializar cargas frigorificadas”.

Normas para embarque

A exportação de animais vivos por via marítima é atualmente regulamentada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, nas Instruções Normativas 24/2014 e 46/2018. Antes, a regulamentação vigente era Instrução Normativa 13/2010. 

Os exportadores alegam cumprir com essa regulamentação e que a prática garante padrões adequados de bem-estar animal. “A partir de 2010, nós contratamos um grupo especializado que fez um diagnóstico dos estabelecimentos de embarque para que eles se tornassem inatacáveis”, afirma o presidente executivo da Associação Brasileira dos Exportadores de Gado (ABEG), Gil Reis.

Uma das exigências é que os exportadores tenham estabelecimentos de pré-embarque que não podem estar há mais de oito horas no porto.

“Antes de embarcar qualquer animal, ele precisa estar por pelo menos sete dias no estabelecimento e ser examinado por veterinários do próprio exportador, do Ministério da Agricultura e da agência de defesa”, complementa Reis.

Ele destaca também que os navios utilizados são aprovados pela Capitania dos Portos e pela Vigilância Agropecuária Internacional, que dimensiona o tamanho das baias e determina se são apropriadas para o animal vivo a ser transportado.

A questão é que, na visão de ativistas e especialistas, as normas do Ministério da Agricultura e a forma como acontece a fiscalização na prática estão desatualizadas e em falta com as normas da Organização Mundial de Sanidade Animal (OIE).

De acordo com o professor Mateus Paranhos da Costa, docente de Etologia e Bem-Estar Animal do Departamento de Zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), “o Ministério da Agricultura está devendo regulamentações claras e detalhadas sobre como tratar a questão do bem-estar dos animais de produção nos diferentes cenários”.

Em manifesto publicado por ele e assinado em conjunto com mais 14 docentes da área, ele pede que as condições sejam avaliadas de acordo com evidências científicas apoiadas pela OIE.

Para o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, as normas não especificam, por exemplo, a quantidade de alimentos e água potável que devem ser fornecidos aos animais, inclusive permitindo que eles fiquem por até 12 horas sem nenhum deles entre o pré-embarque e a saída do país. 

As regras também não estabelecem a qualidade do ar, padrões de temperatura e umidade que devem ser oferecidas aos animais, muito menos determina quantos funcionários mínimos são necessários para limpeza e manutenção das baias.

Além disso, as atuais regras não estabelecem a necessidade de manter registros detalhados e auditáveis que poderiam elucidar as reais condições enfrentadas pelos animais durante as viagens. Atualmente, tudo o que o MAPA exige é um relatório de viagem breve e vago, que, além disso, é preenchido pelo próprio exportador.

Enfrentamento na Justiça

O assunto também é discutido pelo Judiciário, sob o ponto de vista da proteção animal e da defesa do meio ambiente, há quase duas décadas. Em 2007, a juíza Rosileide Maria da Costa Cunha Filomeno, então na 3ª Vara Cível da Fazenda Pública de Belém, chegou a proibir o embarque de animais vivos no porto da capital paraense, por exemplo. 

Já em 2023, a Minerva Foods, maior exportadora de gado vivo do Brasil, foi condenada, em primeira e segunda instâncias no Tribunal de Justiça de São Paulo, a pagar uma indenização no valor de R$1,4 milhão por dano moral coletivo, em razão de irregularidades ocorridas durante transporte terrestre de bois da fazenda até o Porto de Santos. A empresa ainda tenta recorrer. Após esse caso, neste mês de agosto, a empresa afirmou que vai “descontinuar o negócio de exportação de gado vivo“.

Em outra decisão recente, de abril do ano passado, o juiz Djalma Gomes, da  25ª Vara Cível de São Paulo acatou o pedido de Ação Civil Pública proposta pelo Fórum Nacional de Proteção Animal para a proibição da exportação de animais vivos em portos de todo o Brasil.

A decisão reconheceu as condições de “indignidade e sofrimento” imposta a bovinos e bubalinos na ação proposta pelo Fórum ainda em 2017. A proibição se restringe ao transporte feito em navios – não atingindo as exportações realizadas por outros modais.

A sentença, contudo, só terá efeitos após ser apreciada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), onde cabe recurso e cujo julgamento ainda está sem data marcada.

Em 2018, o juiz já havia concedido liminar determinando a suspensão da exportação de animais vivos em todo o território nacional. Porém, a União recorreu ao TRF-3 e a decisão provisória foi suspensa. 

Após essa determinação, Gomes promoveu audiências públicas e ouviu profissionais da área. Na decisão mais recente, ele destacou que os animais são seres sencientes, ou seja, capazes de sentir dor, angústia, amor, alegria, entre outros.

Violação constitucional

A posição Ministério Público Federal (MPF) no processo no TRF-3, sob parecer do procurador Sérgio Monteiro Medeiros, foi na mesma linha, além de destacar que “o processamento da carne no território brasileiro agrega muito mais valor social (emprego e renda), a par de tributos, em comparação com exportação de gado vivo”. 

A advogada especializada em causas animais, Claudia Nakano, relembra que a proteção da dignidade animal é valor constitucional brasileiro. “A fauna e a flora, segundo inciso 7 do artigo 225 da Constituição Federal, devem ser preservados, protegendo os animais como espécie, garantindo a não extinção e a não crueldade”, explica ela.

Já a lei 9.695/ 1998 impôs sanções penais e administrativas nos casos de abuso e maus-tratos a qualquer tipo de animal com pena de até um ano, além de multas. “O mais importante é o animal. É o respeito a ele como um ser senciente”, complementa ela.

Outro argumento contra a legitimidade da atividade aponta para seus impactos ambientais. O parecer do MPF mostrou que são produzidos cerca de 337,5 mil quilos de esterco apenas no trajeto do local de pré-embarque e o terminal portuário.

“Já embarcados, eles produzirão uma quantidade de 810 mil quilos de esterco por dia para serem lançados diretamente no mar; parte no Brasil e parte em águas internacionais”, detalha Medeiros. “Portanto, em 15 dias, haverá o lançamento no mar de 12 mil toneladas de dejetos animais, fora os animais mortos, que também serão descartados depois de triturados”. 

Lembrando ainda que os gases produzidos pelos bovinos e seu esterco também contribuem para o efeito estufa, como o sulfito de hidrogênio, a amônia, o dióxido de carbono, o monóxido de carbono e o metano.

Dessa forma, a exportação seria capaz de ferir o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, também previsto no artigo 225 da Constituição, além de tratados internacionais de direitos humanos. A defesa do meio ambiente também é um dos princípios da ordem econômica, como presente no artigo 170 do texto constitucional. 

Tendência mundial

Com esse norte, tramitam hoje no Congresso Nacional dois projetos de lei que preveem o fim da exportação de animais vivos por via marítima: o PL 3093/2021, que tramita no Senado; e o PL 3316/2021, na Câmara dos Deputados. Ambos os textos estabelecem o fim da exportação de animais vivos para abate e reprodução, mas, por enquanto, estão distantes de serem pautados pelo Congresso.

As propostas seguem uma tendência observada internacionalmente, em países como Alemanha, Austrália, Índia, Irlanda, Luxemburgo, Nova Zelândia e Reino Unido, além da União Europeia. 

Como já citado, o Reino Unido é o mais recente a prever a proibição com foco no transporte por via marítima. Um projeto de lei, proposto em 2017, foi aprovado recentemente pela Câmara dos Lordes. 

A Índia foi o primeiro país a proibir essas exportações por meio de uma decisão do Ministério da Navegação, em 2018. 

Na Austrália, o governo passou anos anunciando a intenção de encerrar para sempre o embarque de ovelhas vivas. Desde 2019, já havia a proibição às exportações de ovinos para o Oriente Médio nos meses mais quentes do ano. Agora, um plano de transição até 2028 determina o fim desse comércio. 

A Nova Zelândia decidiu pela proibição completa da prática no ano passado.

Na Irlanda, também há restrições parciais. O Departamento de Agricultura decidiu, em 2021, proibir a exportação de animais de qualquer espécie para o Norte de África durante os meses de julho e agosto, período de calor intenso no Hemisfério Norte. 

Em Luxemburgo, o Ministério da Agricultura proibiu a exportação de animais para abate para fora da União Europeia no início de 2022.

Enquanto a própria União Europeia possui uma diretiva, atualizada em 2022, sobre proteção de animais durante o transporte, que estabelece uma série de medidas a serem adotadas pelos navios que transportam animais vivos. 

Na Alemanha, o Ministério da Alimentação e Agricultura decidiu que, a partir de julho, todos os certificados veterinários para exportações de bovinos, ovinos e caprinos vivos para reprodução para países fora do bloco europeu seriam revogados. 

Fonte: Estúdio JOTA

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