O futuro das plataformas digitais no Brasil
O desafio de um julgamento técnico e responsável pelo STF
O julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a responsabilidade das plataformas digitais ocorre em um momento de singular importância para o Brasil, com o potencial de impactar diretamente a liberdade de expressão, a segurança jurídica, a inovação tecnológica e os direitos fundamentais.
No entanto, surgem preocupações de que o STF possa estar ultrapassando suas atribuições ao adentrar em questões que, idealmente, deveriam ser debatidas e decididas pelo Congresso Nacional. Essa situação levanta questões sobre a separação de poderes e a necessidade de um equilíbrio cuidadoso entre a interpretação judicial e a elaboração legislativa, especialmente em áreas tão dinâmicas e complexas como a regulação digital.
De maneira geral, há a impressão de que argumentos cruciais estão sendo negligenciados, enquanto o debate parece sucumbir a pressões externas de grandes mídias e às influências de circunstâncias pessoais, como os ataques sofridos pelos próprios ministros nas redes sociais. Além disso, há um foco desproporcional nos provedores de aplicação de redes sociais, quando, na verdade, o julgamento pode impactar uma ampla gama de plataformas digitais.
É vital que o processo de deliberação sobre um tema tão relevante permaneça independente e se baseie em uma análise abrangente e criteriosa, assegurando que todas as perspectivas relevantes sejam consideradas e que o resultado reflita um compromisso genuíno com os princípios democráticos e os direitos fundamentais.
Longe de sugerir que os ministros devam aceitar qualquer tipo de agressão ou difamação, é importante reconhecer que, por serem figuras públicas ou comparadas a figuras públicas, possuem seu direito à personalidade mitigado. Eles não são cidadãos comuns; estão — ou pelo menos deveriam estar — sujeitos a críticas públicas, por mais duras ou ácidas que sejam, como parte de um regime democrático que valoriza a liberdade de expressão.
Vale ressaltar, nesse contexto, que a simples criação de um perfil em nome de um ministro – como mencionado durante o primeiro dia do julgamento – desde que sem a intenção de personificação, mas com fins humorísticos ou até de crítica, não deveria ser automaticamente considerado ilegal. Críticas mesmo contundentes, fazem parte do espaço público e da democracia.
Com relação ao julgamento, entre as interpretações problemáticas, destaca-se a imprecisão no tratamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que foi caracterizado como uma “imunidade” para as plataformas. Esse dispositivo, na verdade, estabelece uma regra de responsabilização condicional, exigindo ordem judicial para que as empresas respondam por conteúdos de terceiros.
Essa abordagem visa equilibrar direitos e responsabilidades, mas está sendo distorcida para transferir às plataformas a obrigação de controlar e moderar o conteúdo publicado por bilhões de usuários, uma tarefa impraticável que, se mal regulamentada, pode gerar insegurança jurídica e operacional.
Outro ponto que merece atenção é o tratamento dado ao artigo 21 do Marco Civil, que regula a remoção de conteúdos sensíveis, como cenas de nudez ou intimidade no âmbito e nos limites técnicos de cada provedor de aplicação. Esse dispositivo, que exige notificação prévia, foi interpretado de maneira equivocada como se representasse responsabilidade objetiva, ignorando seu caráter híbrido.
Essa má interpretação desconsidera o equilíbrio necessário entre a proteção de direitos fundamentais e a segurança jurídica para as plataformas, enfraquecendo os objetivos do dispositivo.
O julgamento também trouxe outra preocupação importante ao tratar o impulsionamento de publicidade como um ato direto das plataformas, ignorando sua função intermediária. No modelo atual, o conteúdo de anúncios é definido e controlado pelos anunciantes, enquanto as plataformas apenas operacionalizam sua distribuição com base em critérios estabelecidos por contrato.
Interpretar o impulsionamento como responsabilidade exclusiva das plataformas abre um precedente perigoso, permitindo que conteúdos fraudulentos promovidos por anunciantes sejam injustamente atribuídos às empresas de tecnologia. Esse desvio de responsabilidade compromete a previsibilidade do ambiente digital e pode gerar custos e riscos desproporcionais.
Na mesma linha, a possibilidade de identificação e responsabilização direta dos autores de conteúdos ilícitos foi negligenciada. A quebra de sigilo, que poderia ser uma ferramenta essencial para identificar os verdadeiros responsáveis, quase não foi mencionada. O julgamento parece tratar as plataformas como únicas responsáveis, quando, na verdade, a identificação do autor real é frequentemente possível e indispensável. Essa abordagem, além de simplista, ignora a importância de uma educação digital mais robusta, que capacite os usuários a agir de maneira consciente e responsável no ambiente digital.
Outro aspecto relevante é que as empresas — especialmente as big techs — não chegaram ao julgamento de mãos vazias. Reconhecendo a complexidade do tema e a necessidade de um modelo regulatório mais eficaz, essas empresas demonstraram disposição em assumir um papel mais ativo. Elas sugeriram, por exemplo, que estão preparadas para remover conteúdos que sejam objetivamente ilícitos, como materiais que violem direitos fundamentais. Isso demonstra que elas não se opõem a serem parte da solução, mas esperam que o julgamento respeite os limites constitucionais e preserve a segurança jurídica.
Ainda, os ministros demonstraram surpresa com a diversidade de plataformas envolvidas no debate. Entre os Amicus Curiae presentes estavam não apenas redes sociais tradicionais, mas também marketplaces, ferramentas colaborativas como a Wikipedia, e outras plataformas que atuam em setores completamente distintos.
Essa diversidade ilustra a transversalidade dos impactos dessa decisão, que não se limita às grandes empresas de redes sociais e afeta uma ampla gama de serviços digitais. Ignorar essas nuances é ignorar o funcionamento real da economia digital e suas diferentes dinâmicas.
O Brasil, conhecido por sua litigância criativa, também corre o risco de ver um aumento de práticas abusivas. A criação de perfis falsos e conteúdos ofensivos com o objetivo de gerar ações judiciais e buscar indenizações pode se tornar mais frequente. A prática da autoimplicação — em que o autor do conteúdo se passa por vítima — é uma ameaça real que pode sobrecarregar ainda mais um Judiciário já saturado.
Sem critérios claros para identificar e mitigar esses abusos, as plataformas podem ser forçadas a buscar ordens judiciais repetitivas para investigar padrões de litigância predatória, como ações movidas por um mesmo advogado ou grupo, agravando ainda mais a morosidade do sistema.
Outro efeito colateral grave seria a moderação excessiva. Para evitar penalizações, plataformas podem optar simplesmente por remover conteúdos legítimos de forma preventiva, prejudicando a pluralidade de opiniões e a liberdade de expressão. Esse comportamento é especialmente preocupante em um ambiente digital que deveria promover diversidade e inclusão.
Ademais, o impacto sobre plataformas menores não foi devidamente considerado durante a leitura do primeiro voto. Empresas que não possuem os recursos das grandes corporações podem ser as mais afetadas por um regime de responsabilidade desproporcional, inviabilizando suas operações. Isso cria um ambiente anticompetitivo, onde as gigantes da tecnologia consolidam ainda mais seu domínio, sufocando a inovação e eliminando a diversidade de serviços.
Além dos riscos jurídicos, essa decisão também pode ter implicações globais. Plataformas internacionais podem rever suas operações no Brasil, restringindo o acesso de usuários brasileiros a serviços e inovações. Isso criaria uma desconexão entre o Brasil e as tendências globais de regulação e desenvolvimento tecnológico, isolando o país de importantes avanços.
Será que ainda há tempo hábil para que o STF conduza esse julgamento com maior profundidade técnica e responsabilidade, sem ceder às pressões de interesses externos ou às influências de circunstâncias pessoais? O Brasil precisa de decisões que protejam os direitos fundamentais, garantam segurança jurídica e preservem o ambiente digital como um espaço de inovação e liberdade, sem comprometer sua pluralidade e integridade.
Fonte: Jota