TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS, BLOCKCHAIN E MITIGAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CARTULARIDADE

A constante evolução tecnológica tem forçado a releitura de diversos dogmas não só do direito, mas do mundo dos negócios de uma forma geral, com destaque para um dos personagens mais importantes do mundo das garantias contratuais: os títulos de crédito.

Com o avanço da informatização e das técnicas de digitalização e gestão de dados, a utilização de meios físicos e do papel para a realização de transações comerciais vêm enfrentando sensível redução. A substituição dos meios físicos, tais como as adotadas nos livros contábeis, cédulas, minutas contratuais impressas, bem como nas letras de câmbio, duplicatas e notas promissórias, por formas digitais de representação e circulação, demandam uma nova leitura de princípios basilares do direito comercial, como por exemplo, o da cartularidade dos títulos de crédito.  

Durante a idade média, a partir do século V, tivemos o surgimento dos títulos de crédito como instrumentos aptos a viabilizar a realização de transações comerciais mais seguras e confortáveis. Ao propiciar o transporte de valores entre locais distantes por meio de créditos materializados em papel, evitando o deslocamento de ouro e prata, dentre outros ativos, surgiu uma das principais características dos títulos de crédito: a cartularidade.

Tal atributo permitiu a emissão dos títulos como promessa ou ordem de pagamento, cujas condições se encontravam registradas justamente na cártula, seu elemento físico, tradicionalmente composto de papel. Temos, portanto, como corolários do princípio da cartularidade, que a posse do título pelo devedor presume seu pagamento, e que seu protesto somente é possível mediante a apresentação da respectiva cártula.

A própria definição de título de crédito sempre foi atrelada a sua cartularidade por princípio, como estudado pela maior parte da doutrina, ao designá-los como o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo nele mencionado. O art. 887 do Código Civil segue a mesma linha hermenêutica baseada na literalidade e autonomia das condições registradas nos títulos, condizente com a doutrina de Cesare Vivante e adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Este cenário, contudo, vem se modificando.

Uma das principais novidades no âmbito do Direito Empresarial veio com a criação dos títulos de crédito virtuais, os quais dispensam o registro físico em papel, rubricas e assinaturas de próprio punho. Para produzir seus efeitos, tais títulos são criados por meio de computadores e notebooks, neaessitando da segurança de certificados ou assinaturas digitais. Eles permitem, também, operações como endosso e aceite também de forma digital, e adispensando papeis e versões impressas.

A possibilidade de criação destes títulos fora dos meios físicos tradicionais, ou seja, em suas formas digitais e sem registro em papel, representa o que a doutrina costuma chamar de desmaterialização dos títulos de crédito. Ocorre, tal fenômeno, por meio da desvinculação de seu conteúdo da cártula física, o que nos leva a mitigação do princípio da cartularidade.

Neste sentido, o parágrafo terceiro do artigo 889 do Código Civil afirma que títulos de crédito virtuais e físicos detém a mesma validade e legitimidade, o que vem sendo confirmado continuamente pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais dos estados.

Considerando, desta maneira, que o blockchain em apertada síntese, é um registro descentralizado onde cada usuário possui uma versão integral de todo o histórico de operações, não vislumbramos qualquer óbice jurídico a sua utilização como base dos títulos de crédito virtuais. Todas as informações sobre o referido crédito, sua cadeia de endossos e aceites, podem ser registradas no blockchain e de maneira bastante segura por meio de criptografia. Do mesmo modo, a cadeia de existência dos títulos de crédito físicos, como a criação, circulação e cobrança, pode ser reproduzida pelos títulos virtuais, e de maneira mais eficiente, rápida e segura.

O escritor Arthur C. Clarke afirmou que qualquer tecnologia suficientemente avançada é equivalente a magia, o que se mostra a cada dia mais verdadeiro, tamanha a velocidade da capacidade humana de inovar e criar em todos as áreas do conhecimento, inclusive nos negócios. E o advento dos títulos de crédito virtuais somente nos confirma que os dogmas e verdades até então solidamente estabelecidos podem um dia virar pó e ser continuamente revistos, pois a mágica nunca para. 

Autor: Paulo Roberto Vigna

Advogado, sócio-fundador do escritório Vigna Advogados Associados e da VignaTax Consultoria Fiscal e Tributária, Mestre em Relações Sociais do Direito, com MBA em Gestão de Empresas pela FGV.

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