Justiça condena hospital a indenizar vítima de violência obstétrica em São Paulo

Especialista em Direito Médico explica quais situações e práticas podem ser enquadradas como violência obstétrica

A 16ª Vara da Fazenda Pública condenou o Estado de São Paulo a indenizar uma mulher por danos morais em decorrência de violência obstétrica sofrida durante o seu parto, em um hospital da rede estadual. Segundo o processo, a mulher teve seu pedido de fazer cesárea negado pelo hospital. No processo, a vítima disse ter informado a médica que sofre de talassemia, um tipo de anemia hereditária, condição que recomenda a realização de cesariana. Segundo seu relato, a médica ignorou seu pedido e tentou induzir o parto natural. Segundo a vítima, a cesárea só foi realizada depois que o feto entrou em sofrimento diante da insistência no parto normal.

O advogado especialista em Direito Médico Idalvo Matos, do escritório BMF Advogados, explica que mesmo que não sofresse de talassemia, a paciente tem o direito de escolher o tipo de parto. “O médico precisa ter uma justificativa clínica para negar a vontade da gestante. Isso geralmente acontece em casos de urgência e emergência médicas, quando a vida da paciente ou do bebê correm risco e é preciso agir para preservar a vida de ambos. De qualquer forma, essa justificativa precisa constar no prontuário médico”.

A juíza Patrícia Persicano Pires, que fixou a indenização em R$ 20 mil, argumentou na decisão que, não havendo contraindicação pela cesárea, privá-la de sua opção consiste em violência obstétrica. “Cabe ao profissional de saúde orientar a parturiente, informando-a dos benefícios e riscos apresentados por cada via, a fim de que a mulher, esclarecida, possa tomar sua decisão e não ser obrigada a se submeter à via de parto que o médico preferir, como ocorre com qualquer procedimento médico que possa ser realizado por duas técnicas diferentes”, afirmou a magistrada.

Idalvo Matos explica que a violência obstétrica é todo ato que que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério. A definição engloba, ainda, os atos praticados contra a mulher ou seu bebê sem o seu consentimento livre, esclarecido e explícito, em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental. O advogado especialista em Direito Médico conta que a violência obstétrica vai além das condutas fáceis de serem identificadas, como agressões físicas e humilhações, e inclui aquelas instauradas por meio de técnicas prejudiciais, como a manobra de Kristeller (quando o profissional de saúde pressiona a barriga da gestante para forçar a saída do bebê) e a episiotomia (corte no períneo para facilitar a nascimento do bebê). Os dois procedimentos já foram classificados como prejudiciais à saúde do bebê em estudos científicos. Também se enquadram na definição a “recusa em permitir a presença de um acompanhante; negar anestesia; realizar procedimentos como o fórceps sem autorização da mulher; deixar de dar informações importantes e até mesmo o excesso de motivação, aquela famosa insistência para convencer a paciente a fazer algo que ela não quer ou não consegue no momento, são consideradas práticas de violência obstétrica e podem ser punidas pelo judiciário”, acrescenta o especialista.

Negligenciar informações para induzir a paciente a aceitar uma cesárea, quando ela preferia o parto normal, e usar ocitocina (hormônio que incentiva as contrações) sem autorização da parturiente são outros exemplos de violência na hora do parto. “Frases que negam o sofrimento da mulher na hora do parto, tais como ‘não tá doendo nada’, ‘você não está ajudando’, também podem ser enquadradas como violência obstétrica”, completa.

No caso de São Paulo, em específico, a simples recusa em fazer a cesariana já foi considerada violência. “Essa era a vontade expressa da mulher, que ainda apresentou uma justificativa de saúde para a sua decisão. A palavra-chave é a proteção da autonomia para a mulher decidir como quer conduzir o seu parto”, completa o advogado.

Abrangente
Ainda invisibilizada, a violência obstétrica ganhou espaço na imprensa por meio da atuação de entidades de defesa dos direitos das mulheres e por meio de relatos de vítimas nas redes sociais, mas o problema é muito antigo. Já em 2010 um estudo da Fundação Perseu Abramo revelou que uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência na assistência ao parto.

Idalvo Matos conta que a solução passa pela informação. “Tanto para que os médicos evitem essas práticas, quanto para que as pacientes tenham noção dos seus direitos”, diz o advogado.

Prevenção
O especialista conta que a mulher e o obstetra elaboram, durante o pré-natal, um plano para esse parto e ele deve ser seguido. “Quando a mulher faz pré-natal, precisa ser orientada sobre os tipos de parto, os procedimentos, as intercorrências que podem acontecer. Ela precisa receber todas as informações necessárias para decidir como quer fazer o parto. Ela também precisa estar ciente dos riscos de intercorrência médica e consentir os procedimentos que são adotados nesses casos. O pré-natal ajuda muito para que a mulher não seja violentada na sua autonomia e fisicamente”, resume o advogado.

Outra medida que dá mais segurança à gestante e ao médico é o prontuário médico. “Tudo deve ser devidamente registrado. Neste caso de São Paulo, a juíza que condenou o hospital a indenizar a vítima afirma que não havia qualquer informação no prontuário médico da paciente explicando a negativa da médica em fazer a cesárea”, afirma Idalvo Matos.

Legislação
Apesar de não haver uma legislação específica sobre o tema, a Constituição Federal e o Código Civil indicam os elementos que podem ser usados para coibir a prática. “A questão do sequestro da autonomia da mulher pelos profissionais da saúde, por exemplo, contraria o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana. Também, previsto na Constituição Federal, se prevê que ninguém será submetido a tortura, nem tratamento desumano ou degradante. E o artigo 15 do Código Civil determina que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica, também pode ser invocado para os casos de violência obstétrica”, finaliza.

Autor: Idalvo Matos– advogado especialista em Direito Médico, do escritório BMF Advogados.

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