Fragilidade jurídica da tributação sobre cessão de créditos judiciais

A Receita Federal, por meio da Solução de Consulta SRRF03 nº 3.010, publicada em 14 de março de 2025, consolidou o entendimento de que a cessão de precatórios por pessoas físicas deve ser tributada como ganho de capital, partindo a fundamentação apresentada da ideia de que a transferência do crédito judicial gera vantagem econômica ao cedente, atraindo, assim, a incidência do Imposto de Renda, no entanto, essa leitura, além de desconsiderar a realidade fática das operações com precatórios, ultrapassa os limites da Constituição, do Código Tributário Nacional e do próprio bom senso tributário.
A rigor, a cessão de um precatório não representa um negócio lucrativo, logo, o credor, na maioria dos casos, não vende seu crédito porque deseja, mas porque precisa, fazendo-o diante da inércia do próprio Estado, que, mesmo após ser condenado por sentença definitiva, retarda o cumprimento da obrigação, e ao vender seu crédito com significativo deságio — prática comum e esperada nesse mercado — o cedente não está auferindo lucro, mas aceitando perda para, finalmente, ter acesso a recursos que lhe são devidos há anos, portanto, não há qualquer ganho, mas sim há renúncia.
Ainda assim, a Receita tenta tratar esse ato de sacrifício como se fosse uma operação de valorização patrimonial, não sendo aqui um problema apenas técnico, mas jurídico, constitucional e legal. O artigo 153, inciso III, da Constituição [1] dispõe que o imposto sobre a renda incide sobre ganhos e acréscimos de patrimônio, estando o artigo 43 do CTN [2] em perfeita sintonia com o texto constitucional, em que se exige que haja disponibilidade de riqueza nova, não se tratando de uma formalidade semântica: é a essência da tributação sobre a renda, sendo a verdade simples — quem vende um precatório por menos do que ele vale não enriquece, pelo contrário, empobrece.
A tentativa de encaixar essa operação no conceito de ganho de capital desvirtua por completo o que a legislação estabelece como hipótese de incidência tributária, assim, não há valorização, não há bem vendido acima do custo de aquisição, não há rendimento, nem renda, mas o que existe é uma perda aceita, muitas vezes amarga, para que o credor possa, finalmente, dispor de um valor que já lhe pertencia, sendo completamente oposto do ganho de capital. É a liquidação de um crédito judicial a preço inferior ao seu valor reconhecido — e isso, por definição, não pode gerar imposto.
O que torna o cenário ainda mais preocupante é que essa interpretação não se encontra amparada por nenhuma previsão legal específica, não se limitando a Receita a aplicar a lei — ampliando por conta própria, criando, por via interpretativa, uma nova hipótese de tributação — exatamente o que o artigo 108, §1º, do Código Tributário Nacional [3] proíbe, e ao fazê-lo, fere o princípio da legalidade tributária, previsto no artigo 150, inciso I, da Constituição [4], que exige lei formal para instituir ou majorar tributos.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgInt no REsp 2.022.457/RJ [5], deixou claro que a “alienação de precatório com deságio não implica ganho de capital, não havendo o que ser tributado pelo imposto sobre a renda”, estando no mesmo entendimento Castanheira Sarmento ao destacar que “‘indenização’ não é rendimento, não é renda, não é acréscimo patrimonial, não é provento de qualquer natureza. É simples compensação do patrimônio do lesado, seja esse patrimônio material ou moral” [6], ou seja, indenização não é renda, porque não representa acréscimo de patrimônio, mas reposição de perda, ou seja, à cessão de precatórios com deságio, o que se busca nessa operação é amenizar um dano, não realizar um lucro.
Efeitos perversos
Por outro lado, há uma dimensão de justiça fiscal que precisa ser resgatada, na qual o contribuinte que cede seu precatório, muitas vezes após anos de espera, é o elo mais vulnerável da relação, pois já suportou o descumprimento da ordem judicial, já aceitou receber menos do que lhe era devido, e ainda assim vê-se cobrado por um tributo sobre um suposto “ganho” que jamais existiu, se vê a Receita não apenas ignorando a realidade econômica, como também inverte o papel do Fisco: de garantidor da legalidade para agente de oneração indevida.
Esse tipo de interpretação fiscal também gera efeitos práticos perversos, logo ao tributar essas operações, o Estado enfraquece o mercado secundário de precatórios, que é, hoje, uma saída legítima para quem não pode mais esperar, criando por consequência uma cadeia de desestímulos: menos cessões, menos liquidez, menos justiça. O credor perde, o cessionário desiste, o sistema emperra, tudo porque se insiste em tributar onde não há base, onde não há fato gerador, onde não há riqueza — só perda.
Em síntese, a Solução de Consulta SRRF03 nº 3.010/2025 é incompatível com a Constituição, com o CTN e com a realidade dos fatos, sendo essa tributação formalmente inconstitucional e ilegal, materialmente injusta e economicamente perversa, devendo ser corrigida pelo Poder Judiciário, de modo que, a função da tributação, numa sociedade democrática, não é explorar fragilidades, mas respeitar limites que cristalino está: não se pode cobrar imposto de quem não teve ganho algum.
[1] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: (…) III – renda e proventos de qualquer natureza; (…)
[2] Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
[3] Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: (…) § 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.
[4] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; (…)
[5] 1ª. Turma, Relatora Ministra Helena Regina Costa, DJe 16.11.2022
[6] CASTANHEIRA SARMENTO, Eduardo Sócrates. A indenização por dano moral e o imposto de renda, Revista da EMERJ, v.3, n.12, 2000, p. 118
Juarez Arnaldo Fernandes é especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro, Perícia, Avaliação e Arbitragem, Contabilidade Tributária, Contabilidade Forense e Investigação de Fraudes, contador, perito contábil judicial no TJ-PR, TJ-RS e JF-PR, e parecerista.
Fonte: Conjur