Discriminação em processos judiciais por questões de gênero ainda é uma realidade no Brasil

Especialistas explicam como preconceito acontece em diversas áreas do direito e o que está sendo feito para mudar isso
Para atender a uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil tem se posicionado a favor da adoção de um documento latino-americano para incentivar a formação de uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres. Esse foi o objetivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao lançar em 2021 o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Neste mês das mulheres, especialistas explicam um pouco mais sobre esse documento e como ele está provocando mudanças no judiciário brasileiro após três anos.

O advogado previdenciarista Jefferson Maleski, que integra o escritório de advocacia Celso Cândido Souza Advogados, comenta que esse foi um problema levantado por quem vê isso na prática. “Esses debates chegaram no CNJ que, preocupado com essa discriminação de gênero, elaborou um grupo de trabalho para levantar os principais motivos de discriminação em casos judiciais. É o movimento da sociedade que vem apontando essas falhas, que acontecem em todas as áreas do direito, algumas mais visíveis do que outras”.

Ele explica que, em muitos processos em que o polo passivo é a mulher, a exigência de documentação por parte dos juízes é maior, assim como é menor a flexibilidade para se aceitar algumas situações que são naturalmente acolhidas quando o homem é o polo passivo. Ele exemplifica uma das formas que essa discriminação acontece em sua especialidade.

“Em uma família que é segurada especial e vive na zona rural, onde o marido trabalha na roça como pequeno produtor rural, se a mulher sai para trabalhar na cidade, como caixa de supermercado ou como professora, o homem não perde a condição de trabalhador rural. Ele continua tendo os direitos de não precisar recolher a contribuição igual o trabalhador urbano precisa. Ele só precisa comprovar a atividade rural, ele vai lá e pede um benefício, um auxílio doença, uma aposentadoria, simplesmente provando que é rural, juntando documentos rurais”, explica.

Contudo, se a situação for o contrário, ou seja, a mulher permanece na roça comercializando queijo ou vendendo galinha enquanto o marido vai trabalhar na cidade como pedreiro, como servente, o entendimento muda. “Muitos magistrados entendem que a esposa perde também o direito de ser beneficiada com as regras previdenciárias rurais, porque deduzem que seria impossível ela continuar trabalhando na roça. É um tratamento mais duro, com exigência de documentação, o que não é exigido do homem”, compara.

Vara de família
A advogada familiarista Ana Luisa Lopes Moreira, que também integra o escritório Celso Cândido Souza Advogados, ressalta como é a discriminação em sua área de atuação. “Geralmente, em ações de alimento, o padrão de valor estipulado é de 30% do salário mínimo, ou do salário do genitor, mais 50% dividido das despesas extraordinárias que se dividem entre os genitores, como um dentista, por exemplo. Por aí já se pode ver que o desgaste maior recai na mulher, pois os gastos com a criança são, em regra, maiores que aqueles 30% e a mãe vai se virar para suprir”.

Segundo ela, para determinação da pensão a doutrina determina a consideração do trinômio razoabilidade (se o valor é razoável), possibilidade (quanto o pai pode pagar) e necessidade (o que a criança precisa). “Contudo, na prática, a necessidade da criança fica em segundo plano, pois o que pesa é a possibilidade de quanto o pai pode pagar, dessa forma afetando a razoabilidade. Em muitas sentenças não se consideram as possibilidades da mãe e os gastos totais que se tem com a criança, supervalorizando a possibilidade paterna em detrimento destes outros dois importantes aspectos. Normalmente, a mãe não vai reduzir o estilo de vida que a criança leva e vai ficar com a carga maior. Isso sem falar que ela já é sobrecarregada emocionalmente por ter de lidar com o abandono afetivo do filho, em razão deste abandono ser em sua maioria praticado pelo pai”, diz Ana Luisa.

Na prática
Jefferson Maleski destaca como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero tem sido aplicado. “O CNJ vem determinando que em cada região judiciária, cada vara, cada comarca, tenha pelo menos um juiz ou uma juíza com treinamento, com curso de protocolo de gênero, para que ele possa divulgar essas informações. O ideal seria que todos os juízes passassem por esse treinamento para identificar essas discriminações e passar a utilizar nos seus julgamentos, evitando essa discriminação”, afirma.

Ele explica que no poder judiciário as mudanças práticas só se tornam visíveis após alguns anos, por isso ainda é muito cedo para falar de mudanças ou resultados. Mas, enquanto isso não acontece, ele destaca a importância da sociedade estar em alerta quanto a este tema e da atuação dos colegas. “Cabe aos advogados levantar essa questão nas suas peças. Ele tem que apontar que está acontecendo uma discriminação, alguma coisa relacionada ao gênero. Mostrar que ali, se fosse um caso inverso, não estaria sendo feita aquela exigência pelo juiz. E se o juiz não entender, recorrer para as instâncias superiores, até mesmo para chegar ao CNJ, que vai intervir e demonstrar também que precisa haver uma mudança, uma correção nesses julgados”, pontua.

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