Regularidade e fiscalização nas ações do Poder Público podem evitar acidentes e mortes

O garoto Pedro veio a óbito após ser resgatado, com vida, de uma queda em um buraco de seis metros de profundidade

A semana de 22 de agosto de 2022 foi iniciada com uma triste notícia: uma criança de oito anos, o garoto Pedro, veio a óbito após ser resgatado, com vida, de uma queda em um buraco de seis metros de profundidade. A ação do Corpo de Bombeiros durou 17 horas, período este no qual, ininterruptamente, realizava-se a ação de resgate com a cautela necessária para evitar um desmoronamento, pois o local era uma área de aterro e de solo instável. Infelizmente, o menino não resistiu e, ao ser retirado, teve uma parada cardiorrespiratória. O buraco existia no local por se tratar de uma obra para instalação de reservatório de água em um loteamento no Município Carmo do Paranaíba, em Minas Gerais.

Acidente? Seria o caso um simples acidente? Brincar em local não apropriado, in casu, num loteamento particular em obras, certamente não pode ser tratado como mais um desastre, um acidente.

O caso do garoto Pedro é mais um exemplo de como, diariamente, o descaso com o valor da pessoa humana se espraia em espaços públicos e privados, cenários onde, se houvesse regularidade e fiscalização nas ações do Poder Público e dos particulares, prevaleceria a tranquilidade e a segurança. No entanto, em segundos transforma-se num cenário de catástrofe.

O ordenamento jurídico nacional, desde 1988, tem se voltado a trazer regras e princípios que objetivam, em alguma medida, evitar situações como esta e tantas outras que preencheriam milhares de páginas, todas desafortunadamente desastrosas e ceifadora de vidas.

O art. 182 da Constituição da República, ao dispor sobre a política de desenvolvimento urbano, determina que esta será executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A par deste dispositivo, a propriedade privada deverá cumprir sua função social.

O exercício do direito de propriedade – uso, fruição e disposição – não deverá contrariar interesse público ou no caso de um empreendimento como obras de loteamento, não atender à legislação que lhe é afeta. E o loteamento enquadra-se nesse contexto de garantias e de obrigações.

O loteamento particular é regido por leis próprias, federais e municipais, além de normas técnicas. A Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras providências, em seu art. 2º, considera que o parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento. O loteamento, a seu turno, ocorre mediante a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.

A Lei nº 6.766, de 1979, define o empreendedor como o responsável pela implantação do loteamento, em várias categorias (art. 2º-A), mas será o Município, segundo a legislação municipal, que aprovará o empreendimento (art. 12). O ente federativo igualmente terá responsabilidade por sua fiscalização, reservadas ainda ao município as competências legislativas para definir usos permitidos e índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo.

Não se está a discutir a legalidade ou adequação do empreendimento em si, ou seja, a possibilidade de um loteamento estar sendo executado nessa específica área do município. Todavia, qualquer empreendimento deste porte está, por óbvio, sujeito a normas de segurança, destinadas aos trabalhadores, que acessam diretamente o canteiro de obras, assim como aos munícipes que moram em seu entorno, e podem estar sujeitos a riscos decorrentes do canteiro de obras. O acesso ao canteiro, que deve ser sinalizado e controlado, tem por finalidade evitar que terceiros, inclusive crianças, tenham entrada fácil em locais certamente apontados como passíveis de ocorrências de graves acidentes.

O Código de Posturas, assim intitulada a legislação municipal, define a obrigação de proprietários em murar terrenos, edificados ou não, além de guardá-los e fiscalizá-los. Já o Código de Obras volta-se a estabelecer diretrizes e procedimentos administrativos a serem atendidos no licenciamento, fiscalização, projeto, execução e preservação de obras e edificações. O Código de Obras do Município de Carmo do Paranaíba, instituído pela Lei Municipal nº 1.892, de 2007, define as diretrizes básicas de segurança a serem atendidas nas obras e edificações.

Ocorre que em “Nota de Esclarecimento” divulgada em seu sítio eletrônico[1], o Município de Carmo do Paranaíba informou que o Loteamento Alta Vila é um empreendimento particular aprovado por Decreto Municipal, segundo a Lei Federal nº 6.766, de 1979, e que eventuais responsabilidades advindas da execução do empreendimento são de responsabilidade das empresas envolvidas e seus respectivos responsáveis técnicos de operação.

No entanto, pelo Código de Obras do Município, art. 5º, compete à Administração Municipal e da Aplicação da Legislação Edilícia não apenas licenciar os projetos, mas fiscalizar a execução e manutenção das condições de estabilidade, segurança e salubridade das obras, assim como embargar a execução das obras que não atendam ao disposto na legislação.

Certamente o proprietário, empreendedor e o responsável técnico da obra são responsáveis diretos pelo entendimento da legislação municipal e correlata, assim como das normas técnicas.

E o Município? A realização de vistorias, a fiscalização das condições de segurança e salubridade das obras não seriam, quiçá, sua responsabilidade? E a edição de leis precisas sobre a exigência de isolamento completo de canteiros de obras, de modo a zelar pelo bem-estar de seus habitantes, não seria uma medida destinada a garantir a plena segurança entre espaços que possam causar risco a qualquer pessoa e as áreas públicas ou privadas de seu entorno?

Questionam-se os critérios de segurança adotados no empreendimento, em especial o isolamento do canteiro de obras, bem como a sinalização para o acesso ao canteiro de obras (a fim de evitar a entrada de pessoas não autorizadas), além, especificamente, da sinalização interna indicando a abertura de poços, que necessita de proteção coletiva contra soterramento.

Portanto, sob a ótica da ordem urbana, o isolamento externo de canteiros de obras, com as exigências de barreiras, é essencial para preservar a segurança de munícipes, terceiros, de qualquer risco de acidente, evitando o acesso ao ambiente de trabalho, este sim exclusivo de pessoas autorizadas, com sinalização adequada, que possam ser compreendidas igualmente por menores, quanto ao caráter proibitivo da entrada no local. Certamente o ente Municipal não poderá se esquivar da responsabilidade por tal fiscalização.

No canteiro de obras em si, cabe o atendimento à Norma Regulamentadora (NR) nº 18, publicada pela Portaria SEPRT nº 3.733, de 10 de fevereiro de 202[2], estabelece normas sobre Segurança e Saúde no Trabalho na Indústria da Construção. Há regras claras atinentes a ações de abertura de buracos, ou seja, ações de escavação, entre outras, a exigência de sinalização de advertência, inclusive noturna e barreira de isolamento em todo o seu perímetro, de modo a impedir a entrada de pessoas não autorizadas (item 18.7.2.2). Não obstante, a sinalização de segurança deve ser colocada de modo visível em número e tamanho adequados e terá como objetivo advertir quanto aos riscos existentes (18.7.2.2.1 e 18.13). Tais normas destinam-se à segurança, especialmente, dos trabalhadores que executam suas atividades na obra.

A entrada de uma criança em um canteiro de obras e a consequente queda em um buraco sem sinalização, não pode ser aceita como mero acidente, como culpa exclusiva do menor que adentrou no local do empreendimento. São fatos que podem ensejar, inclusive, a responsabilidade criminal, já que simples exposição de qualquer pessoa a uma situação de perigo é capitulável como crime pelo art. 132 do Código Penal, além da possível tipificação do fato como homicídio culposo (art. 121, §§ 3º e 4º do Código Penal).

Essa tragédia infelizmente se soma a tantas outras diariamente noticiadas nos veículos de comunicação nacionais. Na última semana, uma ciclista sofreu grave acidente na Zona Oeste do Rio de Janeiro ao ficar presa pelo pescoço em fios que estavam caídos, com fraturas na tíbia e tornozelo. Os cabos, soltos, teriam enroscado no pescoço da vítima.

Até quando, setor privado e Poder Público, haverá tanta omissão e descaso pela vida e integridade física do ser humano?


Autoras:

Karin Kässmayer- advogada, doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR, professora do IDP-Brasília

Ângela Cassia Costaldello- advogada, doutora em Direito do Estado pela UFPR, professora Titular de Direito Administrativo da UFPR

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